A Esmorga / MDL / PGL - Na sequência das I Jornadas de Língua que estão a decorrer em Ourense, nesta quinta-feira, dia 3 de Abril, a sala 04 da Faculdade de Humanidades será palco de uma interessante conferência ministrada pelo professor Celso Álvarez Cáccamo, um dos poucos sócio-linguistas galegos que pode presentar unha formação académica como tal. De certeza, as suas análises radicais não vão deixar indiferente ninguém.
Subordinada ao título «A perda da Lingua, as clases e as formas de capital», a conferência estará virada para dissertar sobre a substituição linguística, consistente esta em que uma língua ou variedade, simplesmente, deixa de utilizar-se como primeiro idioma no seio da família e nos grupos de amigos, e outra língua ou variedade ocupa o seu lugar. Os factores de vários tipos que entram em jogo neste processo serão analisados em profundidade por Álvarez Cáccamo.
Ainda, a sua exposição também estará virada para as diferentes formas do capital e das suas propriedades dentro do mercado linguístico e social na sociedade de classes, com o objectivo de compreender a perda da língua na Galiza, e, portanto, de imaginar maneiras de intervir para a inversão deste processo desde basicamente, ora uma óptica reformista, ora uma óptica emancipadora.
Como estamos a fazer já habitual durante estes dias a respeito das jornadas ourensanas, o Celso respondeu algumas questões que lhe apresentamos, desta vez as reflexões sobre quatro citações suas que nos pareceram suficientemente significativas ou provocadoras, para nos introduzir mais no assunto...
«Nom gosto de me definir como reintegracionista. Sou simplesmente escritor galego em português. Pratico a unidade da língua portuguesa como pratico a unidade da língua inglesa, que também escrevo».
(Celso Alvarez Cáccamo. Entrevista no PGL, 28 de Agosto de 2007).
Qualquer auto-definição é quase sempre nociva. Amiúde, uma auto-definição situa a focagem, o enquadramento, onde o adversário ideológico (que sempre existe) quer, não onde um quer ou não quer. O "reintegracionismo" é simplesmente a normalidade duma língua, de qualquer língua. Para a saúde mental, é mais prudente deixar aos adversários (não a um próprio) o problema de se auto-definir. Mas neste meu rechaço (intermitente) da etiqueta não sou nada original: demorei anos em compreender, por exemplo, o sentido da não-auto-definição doutras pessoas, como o Mário Herrero.
Ora, eu compreendo também a utilidade pragmática do vocábulo "reintegracionista". Se o "reintegracionismo" existe como categoria social, embora deformada (qualquer embalagem deforma a realidade), os "reintegracionistas" podemos utilizar o posicionamento que nos fazem outros para interpelá-los, interrogar o seu enquadramento com perguntas figuradas deste tipo: "Tudo bem, como quiseres: serei 'reintegracionista'; serei 'lusista'; escreverei 'em português', não em galego. Mas, diz-me de vez, faço ou não faço cultura galega?".
Se a sua resposta é Não, o exercício da procurada exclusão é transparente, e portanto inquestionável. Se a sua resposta é Sim, claro, então desmembram-se as escusas. E se é Sim, talvez, mas..., esse "mas" que resume o conflito linguístico imposto requer, em lógica ética e democrática, ser detalhadamente explicado. Isso já seria bastante para nutrir a ilusão de diálogo..
«A ideia elementar é que a língua é sempre uma questão de classe, e que, enquanto houver classes, haverá sempre alguma questione della lingua. Que não se saiba isto é terrível sintoma da descerebralização maciça».
(Celso Alvarez Cáccamo. «Último texto sobre a língua», artigo no PGL e Vieiros, 24 de Agosto de 2005).
Negar a existência das classes ou reduzi-las a uma trivial diferença resultante da diversidade humana (de gostos, interesses, etc.) nivelada por uma relativa comodidade da renda é uma velha táctica ideológica e pseudo-sociológica para impedir a ré-união da gente. E, se as classes sociais, construíveis (construíveis) no princípio da posição estrutural (se produzes ou não produzes; se te produzem; o que produzes) existem, é apenas lógico que devem ter alguma ligação com um recurso simbólico tão poderoso como a Língua como padrão, como Standard (isto é, estandarte).
Onde se viu que os grupos desiguais possuam qualquer recurso em igual quantidade ou forma, ou em comparável natureza? Que não se aprenda isto nas escolas além do velho indoutrinamento de que "Sabendo o padrão da Língua chegas mais longe" é sintoma da secura mental que nos invade. A perícia na Língua, claro, sempre classifica: class-ifica. Como o faz é uma pergunta possível. Qual Língua ou quais Línguas o fazem é outra.
Se nos interessa reproduzir a lógica da class-ificação social a meio da língua, só nos interessará abordar a segunda pergunta, e construiremos a questione della língua em torno dum resvaladiço conflito entre "o español" e "o português" ou "o galego".Mas se nos interessa apontar elementos de debate para romper essa lógica, teremos de concluir que é melhor, embora duro, renunciar ao nosso étnico amor filial a uma destas línguas e compreender a terrível contradição de "fazer língua". Teremos que perguntar-nos outras cousas, como: como classifica a língua? E concluiremos cousas que talvez nos façam tremer se, por natureza, socialização ou adquirida comodidade, somos pessoas indefensas perante as contradições.
A maior parte das vezes, porém, fazemos as duas perguntas (e mais) simultaneamente, sem distingui-las; daí a confusão do activismo linguístico galego.
«Foi pessoa que sentenciou essa aberração de "a minha pátria é a língua portuguesa", não é? Substituamos "portuguesa" por "galega", ou "galego-portuguesa", e a aberração é comparável. O povo e as elites são as duas faces da pátria, e esse é o problema. Cada pátria imposta preexiste e é eterna: uma inescapável mácula mental».
(Celso Alvarez Cáccamo. «Último texto sobre a língua», artigo no PGL e Vieiros, 24 de Agosto de 2005).
A metade da resposta está na resposta anterior. A Pátria (não as pátrias miúdas que as pessoas, livremente, cultivam para exercerem a política poética ou sobrelevarem a anomia diária), isto é, a "Pátria imposta", sempre requer dous elementos complementares para funcionar como totalizador imaginário: as elites sociais reais, e o Povo a-social irreal construído polas elites reais. Então, acho que nessa Pátria absoluta não há História como tal, como trajecto: na concepção a-social das elites que se chamam patrióticas, o nascimento duma Pátria seria um evento auto-contraditório.
Portanto, por definição a Pátria preexiste ao tempo e ao universo (que até tem um momento inicial, uma singularidade) e, como Deus, tampouco pode morrer. Jamais um autêntico patriota desejará a morte da sua Pátria (enquanto, polo contrário, um autêntico socialista desejará a morte do socialismo para que nasça o comunismo, e um autêntico comunista a morte do comunismo para que nasça o anarquismo). De maneira que o patriotismo não parece uma ideologia política, mas uma posição político-poética cosmogónica alimentada sobre e contra o povo histórico por elites muito pouco patrióticas, o cultivo de cuja retórica ajuda muito a obter subsídios nacionalistas.
E quando a língua se converte em Pátria (isto é, quando se converte em Língua), a diferença linguística é um atentado terrorista e surgem as negociações político-poéticas (em duas frontes) como miragem. Não nos enganemos: qualquer Língua sempre vai querer matar-nos.
«Nom é o meu papel julgar as Academias, porque reconheço que nom me interessam. Em geral, as culturas geram instituiçons deste género para defenderem os seus interesses, e eu nom me sinto implicado com isto».
(Celso Alvarez Cáccamo. Entrevista no PGL, 28 de Agosto de 2007).
Eu julgo diariamente as academias na minha prática ideológica interna, mas não é o meu papel: não concebo que para a recuperação dum idioma agonizante, como o nosso, as Academias possam ser um projecto intelectual interessante. Mas esse é o meu escoramento próprio (cada um tem o seu, ou muitos). Ora bem, eu quisera chegar a aprender a respeitar bastante o direito de cada pessoa e grupo humano, de cada grupo activista, a fabricarem as suas íntimas maneiras de situar-se no mundo e, após muitos anos, acabarem a vida com a sensação de que não tudo o que fizeram entre os demais e com os demais foi inútil para paliarem o arrepiante devalo do projecto humano. Este é um objectivo modesto, como é obrigado.
Obviamente, incluo-me neste desejo de respeito aos meus escoramentos: também eu tenho as minhas maneiras, diárias, de pensar que as minhas práticas não são de todo inúteis, de que até parágrafos como estes podem ter um efeito de, polo menos, diferença (preferivelmente de confusão) na percepção das cousas da língua por alguma pessoa que os leia. Ignoramos o futuro, não é? Existem fenómenos de estranha mudança que os físicos chamam "transição de fase" polos quais um estado aparentemente estável, por acumulação de forças (por acumulação de vontades), pode dar passo num instante a um novo estado radicalmente diferente, como a água que ferve de súbito como se cada partícula fosse consciente da fruição das demais (a consciência é um contínuo, não um absoluto). E, se unimos a isto, por excrescência retórica, o chamado "princípio de incerteza", então complica-se-nos mais, proverbialmente, a tarefa de predizer qualquer cousa.
Por outras palavras: talvez a língua galega ferva logo na Galiza, quase sem nos decatarmos, antes do que suspeitávamos, para se tornar naquilo que a ideologia já diz que é: em língua portuguesa. Então, se isto acontecer, talvez a Academia Galega da Língua Portuguesa tenha tido um efeito agora incalculado. Em qualquer caso, como sempre diz sabiamente Ângelo Cristóvão, é melhor estarmos preparados para uma nova fase (como, por outra parte, já estamos preparados para a desaparição do galego), enquanto continuamos, na vida, a resistir qualquer tipo de exclusão e dominação por mor da nossa liberdade de letras. Das letras galegas.
Obrigado por esta entrevista.