Da colonizaçom à ingerência (2)
por Gerardo González Calvo
No passado chamou-se colonização. Hoje denomina-se ingerência, com a marca da globalização, assente na toda poderosa rede de instituições como o FMI, o Banco Mundial, o AMI (Acordo Multilateral de Investimentos) e a OMC (Organização Mundial do Comércio). Estes quatro monstros sobrealimentam o neocolonialismo de novo tipo, para manter o status quo de um mundo bipolarizado: o Norte e o Sul, em que o Norte é sinónimo de bem-estar e consumo desenfrado e o Sul de fame e pobreza. Começou a falar-se pela primeira vez de ingerência, qualificada de humanitária, quando estalou em 1967 o conflito do Biafra. Esta guerra cheirava a petróleo, por mais que se tentasse envolvê-la no papel celofane de um conflito étnico entre os Ibos do Sul e os Hausas do Norte da Nigéria. É curioso observar que, cada vez que surge um problema bélico em África, procura-se apresentá-lo como uma querela tribal. Esta simplificação impede de compreender o alcance do problema de fundo. Pois bem, o desastre biafrense custou um milhão de vidas humanas. Perante esta catástrofe, um grupo de médicos franceses fundou em 1971 a ONG Medecins sans Frontiers (Médicos sem Fronteiras), uma plataforma que inspirou a criação de numerosas ONGs com o nome de «sem fronteiras»
Entre os médicos fundadores dos Medecins sans Frontiers encontrava-se o dr. Bernard Kouchner, que depois ocupou diversas pastas ? entre elas a da Saúde ? em vários governos franceses. Kouchner foi também representante especial do secretário-geral da ONU para o Kosovo. Impressionado pela barbárie no Biafra, lançou a ideia da necessidade de uma ingerência nos assuntos internos dos países por razões humanitárias. Daí o surgimento da expressom ?ingerência humanitária?.
No princípio, a intenção era boa, porque se baseava no critério de que a neutralidade é cumplicidade, como de alguma maneira haviam demonstrado os países não alinhados. O problema era que a ingerência arrebatava aos estados parte da sua soberania, até então inquestionável. Mas não se podia esconder que esta ingerência era uma faca de dois gumes e que, ao fim e ao cabo, iria mostrar a fragilidade de muitos estados. Além de que a ingerência não se iria usar com o mesmo peso e a mesma medida em todos os países. De facto, assim aconteceu. A ingerência converteu-se num novo jeito de domínio.
Bem vistas as coisas, em África não era necessário introduzir a ingerência como novo conceito de relações internacionais, porque se praticou sempre uma intervenção sem máscaras depois das independências, entre 1957 e 1975. Quer dizer, desde a independência do Gana até à queda definitiva do império colonial português em África. Neste curto período de tempo ? 18 anos ? configurou-se quase totalmente o mapa dos estados negro-africanos soberanos, que se completou com o Zimbabué em 1980 e a Namíbia em 1990. A queda do regime do apartheid na África do Sul, em 1994 ? que era independente desde 1910 ?, abriu caminho ao controlo político pela maioria negra. A enorme cascata de golpes de estado de que padeceu África foi alimentada, na maioria dos casos, polas antigas metrópoles.
Menos visível foi a ingerência económica. Nem à Grã-Bretanha, nem muito menos à França ? que eram as grandes potências colonizadoras em África ? lhes passou pela cabeça conceder a soberania política às suas colónias africanas para que os novos estados pudessem explorar e manejar livremente os seus recursos económicos. O objectivo era outorgar a independência política para continuar a controlar melhor ? eliminadas as pressões internacionais e calados os movimentos independentistas ? as enormes quantidades de matérias-primas do continente. O próprio Charles De Gaulle o assinalou sem o menor rebuço. Tratou-se, portanto, de uma independência não só outorgada, mas muito limitada, submetida aos interesses das ex-metrópoles.