A derrota pela dívida é tão mortal quanto uma derrota militar absoluta (2)

16-04-2009

  23:22:47, por Corral   , 1870 palavras  
Categorias: Ensaio

A derrota pela dívida é tão mortal quanto uma derrota militar absoluta (2)

por Michael Hudson

Sem ajuda da UE ou da economia global

A União Europeia não está em posição de oferecer grande ajuda para a resolução dos problemas financeiros da Islândia. A integração do continente nos anos 1950 foi lançada por sociais-democratas e capitalistas pró industriais como Konrad Adenauer e Charles de Gaulle com a esperança de acabar para sempre com as guerras intestinas do continente. Eles tiveram êxito em formar o Mercado Comum de sete países em 1957. Mas a nova expansão europeia verificou-se em grande medida nos termos do sector financeiro. Esta é a fonte dos problemas que fracturam a "velha" e a "nova" Europa de hoje. É o contexto no qual o problema da dívida da Islândia está agora a ser terminado.

Parece bastante natural para as pessoas pagar dívidas que foram assumidas honestamente. A expectativa normal é de que as pessoas tomarão emprestado ? e os bancos farão empréstimos ? só para investimentos sadios, aqueles que são capazes de gerar um lucro permitindo ao devedor reembolsar o prestamista com juros. Foi assim que os bancos funcionaram durante muitos séculos ? daí, a imagem dos banqueiros prudentes que dizem "não" a quaisquer negócios questionáveis que se lhes apresentem.

Pelo menos este era o modo antigo de fazer as coisas. Quase ninguém antevia um mundo no qual banqueiros criariam crédito irresponsavelmente, levando aos incumprimentos maciços a que assistimos hoje por todo o mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, não menos de um terço das hipotecas habitacionais caíram num estado de Situação Líquida Negativa. Isto significa que a hipoteca excedeu o preço de mercado do imóvel comprometido como colateral. A dívida nacional dos EUA triplicou durante o ano passado, de US$5 milhões de milhões para US$15 milhões de milhões devido aos salvamentos financeiros incluindo a tomada pelo governo de US$5,2 milhões de milhões dos gigantes hipotecários, Fannie Mae e Freddie Mac. Uma única companhia de seguros, a AIG, foi designada para receber US$250 mil milhões de salvamento em dinheiro e um único banco, o Citibank, recebeu mais de US$70 mil milhões. As acções destes até então gigantes financeiros caíram para centavos apenas e o Congresso está agora a debater se finalmente irá nacionalizá-los e eliminar os seus accionistas e mesmos os possuidores dos seus títulos.

Na Grã-Bretanha verificou-se algo muito semelhante. Sentado no mês passado na sala de embarque do aeroporto Heathrow, assisti audiências na BBC em que membros do Parlamento exprimiam espanto pelo facto de os bancos mais seriamente afectados não serem dirigidos por banqueiros e sim por homens de marketing. A sua tarefa não era calcular empréstimos prudentes, mas vender tanto de dívida quanto possível, sem olhar para a capacidade do devedor de pagar. O resultado é que o Banco da Inglaterra ? tal como o Tesouro dos EUA ? está a imprimir novos títulos cujos encargos de juros terão de ser pagos por impostos a serem suportados pelo trabalho e pela indústria.

Rússia, o ensaio geral

Como se pode esperar que a Islândia enfrente esta espécie de ambiente financeiro? Para obter uma perspectiva do que seria um futuro distópico, pode-se olhar para o ensaio geral das chamadas "reformas" financeiras executadas na década de 1990 na Rússia e em outros países pós soviéticos. Trata-se das reformas que os credores ? incluindo os bancos europeus, lamento dizer ? agora querem impor à Islândia. Na Rússia, as expectativas de vida declinaram drasticamente, ao passo que a saúde, prosperidade e esperança feneceram quando forças externas impuseram medidas de austeridade e altas taxas de juros. Os russos acordaram para descobrir que a devastação das reformas que lhes foram impingidas foram tão severas como as da Segunda Guerra Mundial com a redução da população, destruição da indústria, propagação de doenças e perda do controle da sua economia. Os padrões de vida afundaram, especialmente para aposentados, enquanto as perspectivas de emprego fecharam-se para a juventude. Muito do mesmo verificou por toda a antiga União Soviética.

Esta política permanece o "padrão" para países devedores: Venda de activos em troca de centavos de dólar a cleptocratas de todo o globo e liquidação de programas de bem-estar social exactamente no momento em que eles mais são precisos. Em contraste, olhe-se para os países que clamam mais ruidosamente para que a Islândia pague os empréstimos feitos pelos especuladores e arbitrageurs globais. Eles incluem os países mais amplamente devedores, encabeçados pelos Estados Unidos e a Grã-Bretanha, conduzidos por políticos que nunca sonharam em impor tais provações sobre si próprios. Enquanto cortam os seus próprios impostos e aumentam os seus próprios défices governamentais, estes países estão a tentar arrancar tributo financeiro dos países mais pequenos e mais fracos que puderem ameaçar, tal como fizeram com devedores do Terceiro Mundo nos anos 1980 e 1990.

Desmantelando o capitalismo industrial

Isto é uma crise que clama por verdades duras. O que os países credores e as suas instituições financeiras internacionais estão a promover não é o capitalismo como se entendia tradicionalmente. Ao invés de ajudar a industrializar os países aos quais concediam crédito de modo a torná-los viáveis e auto-suficientes com novos meios de pagar as suas importações ? e na verdade pagar dívidas assumidas para reconstruir a sua capacidade produtiva ? os planeadores europeus supervisionaram o desmantelamento da indústria manufactureira.

Ainda pior, eles assim fizeram de um modo que fortaleceu um conjunto de oligarcas financeiros neo-feudais. Economias endividadas foram transformadas num bando de casinos, com jogos especiais (exemplo: instrumentos financeiros opacos como os credit-default swaps ) reservados exclusivamente aos iniciados. Mesmo para entrar dentro deste jogo, alguém deve ser pelo menos milionário, assinando documentos legais de que pode permitir-se perder todo o investimento e ainda assim sobreviver economicamente. A União Europeia então agrava ainda mais as coisas ao apresentar eufemisticamente as suas agências financeiras como doadoras a levarem ajuda. Como se verificou, são os mesmos ideólogos que debilitaram o capitalismo industrial por todo o globo através da proliferação de jogos de dívida alavancada que redistribuíram a riqueza para cima em toda a parte onde operaram.

Esta política cria a escravização pela dívida para a maior parte dos cidadãos, acima de tudo nos países mais novos que procuram aderir à União Europeia. Mesmo no país mais rico da terra ? os Estados Unidos ? cerca da metade de todos os cidadãos agora não têm valor líquido e o fosso entre os 10 por cento mais ricos e o resto da sociedade ampliou-se geometricamente desde 1980. Este é o sistema injusto que os principais credores do mundo exportariam para a Islândia ? se pudessem convencer os seus eleitores a aceitarem a construção da pirâmide da dívida neoliberal como meio de ficar rico. Os recentes tumultos em todos os estados pós soviéticos sugerem que este plano não está a funcionar. As suas populações estão agora a sentir quão profundamente as chamadas reformas financeiras (exemplo: desregulação financeira) promovidas pelos bancos europeus e os Acordos de Lisboa polarizaram as suas economias.

Reconhecer o inimigo interno

A única defesa contra uma política tão desastrosa é reconhecer que há melhores alternativas. Simplesmente não é possível para as economias astronomicamente endividadas de hoje "actuarem de modo a sair da dívida" com o velho truque de inflacionar a oferta monetária. Tentar fazer isso provocará o colapso da taxa de câmbio da divisa e desviará tanta receita para pagar credores ? e transferirá tanta propriedade para fora dos habitantes locais ? que uma nova espécie de economia pós capitalista de não produção/consumo será criada, cada vez menos capaz de ser auto-suficiente e independente, para não dizer nada acerca de ser justa e sustentável.

A crise financeira da Islândia hoje é menos uma questão de direito internacional e sim de absoluto desrespeito à lei perpetrado pelos fornecedores da chamada democracia de mercado livre. Os países que pressionam a Islândia pelo pagamento impõem um conjunto de leis aos outros ao passo que seguem um conjunto muito diferente para si próprios. Ao pregar à Islândia acerca do direito internacional, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha romperam eles próprios a mais clara das leis internacionais ? aquela contra travar guerra agressivas. Os seus propagandistas são habilidosos ao usar a linguagem do capitalismo e da moralidade, mas eles não são nem capitalistas nem morais. A sua estratégia financeira é jogar um antigo jogo psicológico. Eles fazem com que países como a Islândia se sintam culpados em relação aos seus devedores ao invés de reconhecerem que foram vítimas de um esquema Ponzi internacional. Em suma, o jogo é estabelecer "leis" para devedores na forma de programas de austeridade destrutivos moldados por credores irresponsáveis e na verdade parasitários. Esta "ajuda conselho" acaba no despojamento absoluto de activos, tanto públicos como privados.

O despojamento de activos para pagar dívidas provocou colapsos vezes sem conta ao longo da história, mas é estranhamente subestimado no curriculum académico de hoje como uma "verdade inconveniente" para os interesses financeiros. O rendimento é sugado através de um esquema que é elegante e simples. As infortunadas vítimas ? e agora economias inteiras, não apenas indivíduos ? são manobradas para dentro de um moinho de dívida do qual já não podem escapar. Os credores acumulam sobre o crédito e deixam as dívidas crescerem com a "mágica do juro composto", sabendo que os seus empréstimos não podem ser reembolsados ? excepto pela venda de activos. A produtividade de uma economia nunca pode acompanhar o ritmo dos juros compostos a acumularem-se exponencialmente. Seja o que for que fosse possuído é tomado pelos pagamentos de juros que nunca acabam. O objectivo é que estes pagamentos absorvam tanto excedente quanto possível, de modo que a economia nacional trabalhe com efeito para pagar tributo à nova classe financeira global ? banqueiros e administradores de fundos mútuos, fundos de pensão e hedge funds.

O produto que eles estão a vender é dívida. Eles constroem a sua própria riqueza ao endividar outros e então forçá-los a liquidações para compradores que assumem a sua própria dívida na esperança de efectuarem ganhos com os preços dos activos quando os preços da propriedade são inflados de modo impossível em relação aos salários do trabalho vivo. Isto tornou-se a nova e eufemisticamente alcunhada forma pós industrial de criação de riqueza ? uma estratégia que agora está a lançar economias no colapso por todo o mundo.

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