A DERROTA PELA DÍVIDA é tão mortal quanto uma derrota militar absoluta (3)

19-04-2009

  23:06:48, por Corral   , 3251 palavras  
Categorias: Ensaio

A DERROTA PELA DÍVIDA é tão mortal quanto uma derrota militar absoluta (3)

por Michael Hudson

O papel dos Estados Unidos

Os Estados Unidos aprisionaram outros países dentro de um sistema de pesadelo no qual eles têm pouca escolha prática excepto reciclar os seus influxos de dólares em excesso na balança de pagamentos de volta para os Estados Unidos, principalmente na forma de empréstimos ao Tesouro dos EUA. Quando bancos centrais estrangeiros recebem dólares pelas suas exportações (ou pela venda das suas companhias), eles estão limitados naquilo que podem fazer com estes dólares. O Congresso dos EUA não os deixará comprar companhias ou recursos internos importantes e não se desfará dos haveres em ouro estado-unidenses. Assim, os bancos centrais estrangeiros estão obrigados a comprar títulos do Tesouro ? ou, como a oferta destes títulos tem-se esgotado (sendo limitada pelo défice orçamental interno), títulos apoiados por hipotecas emitidos pelos agora públicos Fannie Mae e Freddie Mac, empacotadores de hipotecas subprime. Estas duas agências semi-oficiais foram formalmente nacionalizadas no ano passado após uma série de fraudes financeiras e investimentos desastrosos que destruíram o seu capital, obrigando o governo dos EUA a intervir e tranquilizar governos desde a China até Israel cujos bancos centrais estiveram a reciclar os seus influxos excedentes de dólares nestes títulos.

Os islandeses deveriam manter em mente um princípio básico importantíssimo. Os Estados Unidos são o maior país devedor do mundo e nunca pagarão a sua própria dívida externa. Além de actualmente terem em dívida quatro milhões de milhões de dólares, o seu Tesouro pretende continuar a emitir novos papéis IOUs em troca de bens, serviços e activos reais da China, Japão e outros países credores ? até que os governos enterrados nestes dólares de papel virem as costas a este esquema Madoff-Ponzi (note-se que estes esquemas são sempre homenagens a operadores americanos), reconhecendo o que Adam Smith explicou em A riqueza das nações: Nenhum país alguma vez reembolsou as suas dívidas. Países pequenos como a Islândia, bem como pequenos contribuintes em países ricos, podem ser coagidos a pagar através de propaganda, jogos psicológicos e ameaças directas ? até que já não lhes restem activos para transferir. Mas os big boys estão acima da lei. Eles controlam os tribunais (os quais muitas vezes sentenciam sem muita consideração pela lei real), assim como escrevem a história e a cobertura dos jornais ? e dos curricula das business school ? para que sirva aos seus próprios interesses.

O segundo princípio importante é quão radicalmente a ordem pós capitalista de hoje inverteu os meios tradicionais de fazer dinheiro. Ao invés de fazer lucros com novo investimento de capital, o caminho mais fácil para riquezas rápidas no sistema financeiro global de hoje é arrestar propriedade a centavos de dólar e fazer um "ganho de capital" ao lançá-la nos mercados financeiros mundiais que estão a ser inflados pelos bancos centrais. Enquanto os porta-vozes financeiros prometem que "não há uma coisa tal como almoço gratuito", a bolha financeira relâmpago de hoje, a fraude e as privatizações de iniciados que culminam em salvamentos do sector público ("socializando o risco" enquanto privatizando os lucros e os ganhos de capital) ? tornou-se o meio mais importante para obter um almoço gratuito.

O jogo financeiro de soma zero da Islândia

Mas isto é um jogo de soma zero, com perdedores do outro lado da mesa dos vencedores. O ganho de uma parte é a perda da outra ? e na verdade esta espécie de jogo acaba por contrair a economia ao desviar recursos para longe do investimento real em formação de capital tangível. Ao contrário do capitalismo industrial, o qual emprega trabalho e investe em equipamento de capital para transformar matérias-primas em mercadorias vendáveis, o sistema financiarizado pós industrial de hoje apenas oferece a riqueza virtual (e temporária) das bolhas de activos. Os seus administradores financeiros afirmam estar a actuar na tradição dos economistas clássicos e partilhar o seu conceito de mercados livres, mas na realidade eles têm feito parte de uma fraude intelectual que descreve o seu sistema como algo diferente da extracção de riqueza financiarizada sobre a economia real da produção e do consumo que realmente é. A riqueza financiarizada é extractiva, não produtiva. Eis porque empréstimos, acções e títulos são direitos sobre riqueza, não a própria riqueza real.

Este é o contexto no qual a guerra financeira de hoje contra a Islândia está a ser travada. Os proprietários de casas estão a pagar tributo não na forma de impostos a uma força invasora ocupante mas sim em juros aos patrocinadores locais da pirâmide do endividamento que apanhou a Islândia em tão profunda perturbação e ao credores internacionais e possibilitadores desta super-financiarização da economia. O domínio público do país, a sua terra e os recursos geotérmicos, a sua indústria turística e os seus activos públicos estão a ser olhados pelos credores estrangeiros como presas a serem tomadas da forma como se verificou em muitos países do Terceiro Mundo. Foi isto que arruinou a Turquia e o Egipto no fim do século XIX e deitou abaixo outros reinos durante séculos antes disso. Contudo, muitos islandeses estão a encaminhar-se para este futuro voluntariamente, como se de certa forma fosse correcto ao invés de um exercício de finanças predatórias conduzido por países que não mostraram nenhuma vontade (ou capacidade) para pagar as suas próprias dívidas internacionais.

Os países sabem quando estão a ser atacados militarmente. As forças de defesa combatem para impedir os invasores de tomarem a sua terra e imporem os seus tributos. Nenhum país pensaria em saudar um exército estrangeiro para fazer o que Guilherme o Conquistador fez à Inglaterra após 1066. Ele ordenou aos seus contabilistas que compilassem o Recenseamento Territorial (Domesday Book) dentro do prazo de trinta anos (ficou pronto em 1086), calculando o valor locativo da terra inglesa a fim de tributá-la para a Coroa.

Assim foram criados os reinos da Europa, na maior parte. A renda era paga aos parceiros dos comandantes militares e os seus herdeiros dominaram como Lordes ausentes durante nove séculos. Eles rapidamente actuaram para manter o que começara como um rendimento real para si próprios, celebrando isto como a vitória da "democracia" de livre mercado na Magna Carta liberatum (1215) e na subsequente Revolta dos Barões (1258-65). Hoje, estes lordes da terra e aqueles que compraram a sua propriedade avançaram na hipoteca da dívida, pagando aos credores o que antigamente era pago primeiramente como impostos e então tomado como renda.

O que levou séculos a atingir na Europa feudal está agora a ser ameaçado na Islândia, comprimido no espaço de apenas uma década aproximadamente. E sob muitos aspectos esta situação financeira não faz sentido ? a menos que se olhe através da história para ver que a mesma tragédia aconteceu vezes sem conta.

Os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e o Fundo Monetário Internacional ("a comunidade global de investimento") estão a exprimir as suas exigências de políticas draconianas de austeridade na linguagem do capitalismo. Mas o que eles estão realmente a promover é um sistema financeiro que ameaça acabar na escravidão pela dívida (debt peonage), não o capitalismo democrático. Através de todo o globo, desde os países bálticos até a Hungria na Europa e na verdade desde a Rússia até a China, tumultos e greves espontâneas irromperam recentemente para protestar contra esta dinâmica financeira pós capitalista. Ela já destruiu a capacidade industrial de países devedores sujeitos a programas de austeridade cruéis impostos pelo FMI a actuar como agente para a classe financeira global. Isto simplesmente repete o que os britânicos fizeram na Índia. O crescimento industrial foi substituído por uma bolha imobiliária financiarizada. A "etapa final" desta dinâmica é arrestar e vender os activos dos devedores a preços de dádiva. A conversa acerca de democracia da elite financeira é uma história de cobertura das relações públicas. As suas vendas com a "mágica do juro composto" ameaçam destruir países inteiros.

Felizmente, isto não precisa acontecer em países que não impõem alavancagem de dívida sobre si próprios, mas só em países que deixam o serviço público da criação de moeda e crédito serem privatizados nas mãos de uma classe financeira cosmopolita. A Islândia ainda tem uma alternativa futura diante de si, se os eleitores reconhecerem isto a tempo. Mas para alcançar o futuro melhor que a maior parte dos seus cidadãos pretende, ela deve entender a armadilha predatória da dívida na qual caiu ? ou, mais precisamente, ser afastada da crença na mesma doutrina financeira ilegítima que arruinou a Rússia e outras economias pós soviéticas, bem como países do Terceiro Mundo antes deles sob década de "planos de austeridade" do FMI concebidos para reprimir o crescimento interno (e a concorrência) e a estabilidade económica a fim de pagar aos credores estrangeiros. A história proporciona exemplos trágicos ? os resultados da I Guerra Mundial e a própria Inglaterra nos séculos das guerras aparentemente perpétuas com a França.

Economias industriais a reverterem para "economias de portagem"

O mundo está a mergulhar "de volta ao futuro", numa época de neo-feudalismo e escravidão pela dívida. Isto é um travesti da promessa do capitalismo industrial como este parecia estar a evoluir na véspera do século XX e na Era Progressiva da social-democracia. O que não foi reconhecido foi a bomba relógio financeira implantada no DNA da Europa como tendo evoluído a partir da Idade Média.

Quando o feudalismo europeu abriu caminho à formação de nações-estado, a maior parte dos reinos tornou-se dependente de empréstimos estrangeiros para travar as suas guerras ? a começar pelos Cruzados, cujo saqueio de Bizâncio proporcionou-lhes um enorme influxo de ouro e prata. Foi isto que decompôs as proibições da Igreja quanto à usura. Uma vez que os governos pagavam juros a ordens de elite da Igreja, como os Templários e os Hospitalários, tornou-se permissível para os bancos aderirem ao empréstimo a juros ? para os reis, a nobreza e as classes mercantis como grandes clientes.

O nascimento da banca internacional pós-medieval demonstrou-se desastroso para muitos bancos de família, que afundaram com maus empréstimos às principais potências da Europa primitiva, desde a Espanha à Inglaterra. O historiador Richard Ehrenberg observa que bancarrotas espanholas "verificaram-se a intervalos de cerca de vinte anos ? 1557, 1575, 1596, 1607, 1627, 1647?, muitas vezes sendo racionalizadas por piedosas alusões a proibições da Igreja contra a usura. A Inglaterra declarou bancarrota sob Eduardo III em 1339, e Charles II encerrou o erário público (Exchequer) em 1672 e suspendeu o pagamento da sua dívida flutuante. Cancelar dívidas foi o único meio de conservar relações económicas e políticas básicas, bem como a independência nacional. Em vista desta longa experiência, o conselho da Inglaterra à Islândia de hoje é do tipo "Faça como nós dizemos, não como nós próprio fizemos e estamos a fazer".

Os bancos centrais foram formados para avançar crédito aos governos e os bancos comerciais para ajudar a financiar a expansão comercial da Revolução Industrial e os gastos com a infraestrutura relacionada, mineração e navegação, culminando nos monopólios de infraestrutura tais como canais, ferrovias e portos e posteriormente combustível e energia. A época medieval da "acumulação primitiva" ? a extracção de rendimento pelo apresamento militar ? foi substituída pela mais pacífica e aparentemente civilizada prática de credores apropriarem-se do excedente económico fazendo empréstimos a juros, e pelo arresto da propriedade quando os encargos de juros não podiam ser pagos.

Nos últimos anos administradores financeiros persuadiram muitos países a venderem empresas públicas como as de água ou abastecimento de energia, principalmente para obterem dinheiro a fim de pagar dívidas ou cortar impostos sobre os escalões de riqueza mais elevados. Esta venda dos "bens comuns" ("commons") por líderes ingénuos e míopes (e os "idiotas úteis" promovidos pelos lobbyistas financeiros como seus conselheiros económicos) transformou países devedores em "economias de portagem" ("tollbooth economies") nos quais os serviços básicos tornaram-se veículos para extrair proporções cada vez maiores do rendimento nacional e da riqueza em benefício de poucos. Isto é a antítese dos "mercados livres" tal como os economistas clássicos entendiam a expressão. Eles são mercados concebidos e controlados pelo sector financeiro para apropriaram-se em seu próprio proveito do excedente produzido pelo trabalho e pelo investimento em capital tangível.

Para promover esta sucção do rendimento excedente, os ricos financiaram vastas campanhas de desinformação (propaganda) por todo o mundo. A sua táctica é utilizar expressões familiares e ideologicamente reverenciadas tais como "mercados livres", "democracia económica" e "fidedignidade" para ganhar os corações e mentes da população enquanto realmente impõem um conjunto de políticas em absoluto contraste com a ideologia do Iluminismo, a economia política clássica, a reforma da Era Progressiva e a social-democracia do século XX ? os ideais dos povos amantes da liberdade em toda a parte. Os lobbyistas financeiros gastaram milhares de milhões de dólares com think tanks de relações públicas para alcançarem esta fraude ideológica. Eles fizeram doações a business schools e ganharam o controle de agências do governo para promover o seu ponto de vista orientado para os credores, encabeçado pelos bancos centrais para servir de cunha ideológica às forças anti-democráticas de hoje. Esta é a ideologia que empurrou grande parte do Terceiro Mundo para a pobreza a partir da década de 1960, bem como as economias pós soviéticas hoje tragicamente infestadas de dívida.

Guerra financeira

À primeira vista as finanças parecem algo muito diferente da guerra aberta. Toda a gente sabe muito bem que exércitos invasores não vêm em termos amistosos. Navios e tropas estrangeiras não são bem vindos, mesmo que prometam ajudar a construir a economia com a construção de novas estradas e pontes (as melhores para os seus tanques e tropas viajarem), centrais hidroeléctricas e geotérmicas para exportar electricidade (mantendo os rendimentos para si próprios), hotéis e estações de águas para si próprios e os estrangeiros desfrutarem (e manter os rendimentos locativos e os valores dos sítios) e criar pormenorizadas análises estatísticas (tais como o Domesday Book, o livro do recenseamento acima mencionado) a fim de administrar a economia em seu favor.

Hoje esta estratégia financeira tornou-se multilateral. O FMI actua como um fiscal para os credores globais apropriarem-se do rendimento do imobiliário, da infraestrutura nacional e da indústria como um parasitismo financeiro. O que é notável é que países por todo o mundo estão a perder a sua independência económica e fiscal pacificamente ? pelo menos isto é pacífico quando os países alvos não reagem. (Chile, Cuba e Irão servem como objecto de lições para as sanções económicas punitivas impostas sobre países que não aceitam a actual ética económica predatória.) A conquista financeira é portanto mais encoberta do que a guerra militar. Ela confia mais na dimensão educacional e psicológica e tem mais êxito quanto a vítima nem mesmo percebe que está a ser atacada.

Mas os efeitos são tão devastadores sobre a vida humana quanto os que a Rússia sofreu às mãos dos "reformadores" do Ocidente na década de 1990. A austeridade financeira imposta por regimes ditados por credores encurta a esperança de vida, reduz taxas de natalidade, aumenta a fuga ao trabalho, as taxas de suicídio, de doença, alcoolismo e abuso de drogas. Assim como a guerra mata os homens de uma economia em idade de combate (25-35), a austeridade financeira leva-os a emigrar para encontrar trabalho. Foi por isto que o investidor estado-unidense Warren Buffett chamou às collateralized debt obligations (CDOs), credit default swaps e instrumentos semelhantes de alavancagem de dívida "armas de destruição financeira maciça".

Considere-se o papel da banca nesta ordem neo-feudal. Os bancos não criam crédito para financiar a manufactura ? o que é feito principalmente a partir de rendimentos retidos e acções. Os bancos criam crédito primariamente para emprestar contra colaterais já existentes ? empréstimos que simplesmente extraem dinheiro da economia. Isto é um acto inerentemente destrutivo, um acto que é anti-capitalista no sentido de que enfraquece o crescimento industrial em favor da extracção de juros e de ganhos especulativos a curto prazo.

O truque é fazer com que esta política seja saudada como se fosse um progresso, como "pós industrial" ao invés de um deslizamento para trás. Só hoje está a tornar-se aparente que empréstimos de bancos com base no colateral não "criam riqueza", eles sobretudo incham bolhas de preços de activos, especialmente no imobiliário. Os banqueiros calculam quanta dívida um dado fluxo de imóveis residencial ou comerciais pode suportar e criam bastante crédito para fazer um empréstimo suficientemente grande para absorver esta receita excedente. Os banqueiros fazem o mesmo com a indústria ao emprestarem aos atacantes (raiders) corporativos bastante dinheiro em títulos "lixo" de tomadas empresariais a fim de transformar os lucros num fluxo de pagamentos de juros para si próprios e com ganhos de capital para os atacantes. Os bancos centrais alimentam este processo ao inundar economias com crédito fácil (isto é, dívida) que mantém o sector financeiro gordo enquanto empobrece o país cada vez mais endividado.

As finanças portanto são a antítese histórica da propriedade, santificando o seu próprio direito a expropriar proprietários endividados. Originalmente denunciada pela cristandade, pelo judaísmo e pelo Islão, a dívida produtora de juros santificou-se como a forma predominante de riqueza. Não era isto o que os economistas clássicos e os reformadores políticos esperavam. Eles explicaram como evitar esta distopia económica através de adequada política fiscal e regulação do governo a fim de minimizar o papel económico e o poder político de banqueiros pós-feudais e de rentistas. (Rentistas são pessoas que vivem de juros e rendas, isto é, rendimentos pagos numa base regular. Uma rente era um título do governo francês que pagava juros a intervalos regulares; a ideia foi estendida aos senhores da terra.)

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