por Michael Hudson
Sistema de equilíbrios políticos na economia
O melhor caminho para os países é colocar o seu próprio crescimento económico antes dos interesses dos credores. Durante muitas gerações esta ética apoiou um conjunto de equilíbrios políticos que mantiveram o crescimento da dívida internacional em termos considerados toleráveis ? demasiado pesado pelos padrões de mercado livre de Smith e John Stuart Mill, mas não tão altos a ponto de generalizar incumprimentos e repúdios de dívida.
Esta ética mudou nos últimos anos. Os países aceitaram a propaganda dos credores de que dívidas são uma "questão de honra", tal como os pobres acreditam que pagar as suas dívidas ? mesmo quando estão em situação líquida negativa ? é a "coisa mais honesta a fazer". Obviamente esta ética não é auto-aplicada nas maiores instituições financeiras do mundo ou entre especuladores imobiliários. Mas a Islândia aceitou-a, o que é uma característica de comunidades pequenas, muito coesas, onde a palavra dos vizinhos é um vínculo. A raiz da ética da Islândia é a ajuda mútua e a prosperidade para todos. É uma atitude refinada, altamente socializada, e contudo trágica pois ajudou o país a cair de bruços diante da banha da cobra da escravidão pela dívida.
Quando líderes políticos deixam de reconhecer que os sistemas de controle são uma função própria de governo sacrificam o desejo do seu país de crescimento económico e de elevação de padrões de dívida numa vã tentativa de pagar credores. Tais tentativas terão de ser inúteis, porque "a mágica do juro composto" é um mito cruel: Na realidade toda taxa de juro implica uma duplicação no tempo e nenhum crescimento "real" de uma economia alguma vez foi capaz de crescer exponencialmente a uma taxa suficientemente rápida para pagar as dívidas que se mantiveram a acumular juros.
No ambiente desregulamentado de hoje em que "o céu é o limite", estas acumulações foram recicladas em ainda novos empréstimos. Estes são então empacotados e revendidos, onerando a economia com cada vez mais dívida que até agora tem sido quase impossível rastrear. E para cumular o assunto, especuladores financeiros aplicam milhões de milhões de dólares em apostas sobre se as dívidas podem ou não ser pagas e quanto os seus preços de mercado são prováveis de mudar. O que era suposto ser um sistema financeiro destinado a financiar novo capital de investimento para produzir mais e elevar padrões de vida redundou numa economia de casino ? onde jogadores são apoiados pelos banqueiros para jogarem o jogo da dívida, com os governos ao lado para tornar os vencedores "inteiros" nos casos em que os devedores perderam demasiado do seu dinheiro para pagar à vista.
Dívidas que não podem ser pagas, não o serão
Todo economista que examinou a matemática do juro composto salientou o facto de no fim as dívidas não poderem ser pagas. Qualquer taxa de juro pode ser encarada em termos do tempo que leva para duplicar uma dívida. A 5 por cento, uma dívida duplica em 14,5 anos; a 7 por cento, em 10 anos; a 10 por cento, em 7 anos. Já em 2000 AC, na Babilónia, escribas contabilistas foram treinados para calcular como o principal de empréstimos duplicava em cinco anos à taxa então corrente de 20% ao ano (1/60 por mês durante 60 meses). "Quanto tempo leva uma dívida para multiplicar 64 vezes?", perguntava um exercício de estudante. A resposta é 30 anos ? seis vezes duplicada.
Nenhuma economia foi alguma vez capaz de manter-se a duplicar numa base constante. As dívidas crescem por princípios puramente matemáticos, as economias "reais" diminuem gradualmente em curvas S. Isto também era conhecido na Babilónia, cujos modelos económicos calculavam o crescimento de rebanhos, os quais normalmente diminuem gradualmente. Uma grande razão o arrefecimento do crescimento económico nacional nas economias de hoje é que cada vez mais rendimento tem de ser pago para suportar o fardo da dívida que aumenta. Ao deixar menos receita disponível para investimento directo na formação de capital e para alimentar a elevação dos padrões de vida, os pagamentos de juros acabam por afundar as economias na recessão. Durante o último século ou pouco mais, habitualmente levava 18 anos para que o típico ciclo imobiliário cumprisse o seu percurso.
Países que não pagaram as suas dívidas
Vamos rascunhar um ficheiro de países que anularam as suas dívidas ? ou actuaram sem intenção de pagar. A lista começa com o maior devedor do mundo, os Estados Unidos. O seu governo deve US$4 milhões de milhões a bancos centrais estrangeiros. Pensar nisso por um momento mostra que não há qualquer meio de se poder pagar, mesmo se isto fosse desejado. Os Estados Unidos estão incidindo num défice comercial crónico, no topo do qual está um aprofundamento de gastos militares. Ao tratar desta crónica subsistência acima dos meios financeiros do país, os diplomatas americanos são quase os únicos no mundo que conduzem a diplomacia internacional do modo que os manuais assumem que todos os países deveriam fazer. Eles actuam puramente e implacavelmente nos seu próprio interesse nacional. Este interesse reside na obtenção do proverbial almoço gratuito, dando IOUs pelos recursos reais e activos de outros países, sem nenhuma intenção ou capacidade para pagar.
Responsáveis dos EUA já sugeriram que esta dívida será anulada (wiped out). O seu plano seria convertê-la em "papel ouro". Os bancos centrais estrangeiros simplesmente carimbariam nos seus títulos do Tesouro dos EUA "bom apenas par pagamento entre bancos centrais e o Fundo Monetário Internacional". A nenhum outro país seria permitido anular as suas dívidas por este meio. Só o devedor no centro seria capaz de continuar a emitir dinheiro-dívida sem constrangimento externo.
Temos de admitir que diplomatas dos EUA libertaram países da dívida quando tiveram uma razão política para fazê-lo. O mais famoso exemplo moderno de um cancelamento de dívida numa economia grande é o da Alemanha em 1947. Os Aliados cancelaram a dívida pessoal e de negócios alemã, com base em que a maior parte era devida a antigos nazis. As únicas dívidas deixadas na contabilidade foram as dívidas salariais que os empregadores tinham para com a sua força de trabalho e os fundos de maneio para companhias e famílias.
Em 1931, uma geração antes, os Aliados haviam anulado a dívida das reparações de guerra da Alemanha originada pela I Guerra Mundial e negociaram uma moratória das suas dívidas de armas para com os Estados Unidos. Os principais governos do mundo perceberam que manter estas dívidas na contabilidade levaria ao colapso da economia global. Mas no momento em que chegaram a esta conclusão já era demasiado tarde. A combinação das dívidas de armas Inter-Aliadas para com os Estados Unidos e as dívidas de reparações impostas pelos Aliados em grande parte para pagar a América foi um dos principais factores que levou o mundo à depressão.
A economia dos EUA estava a entrar em colapso sob o peso da sua dívida interna a acumular-se em pirâmide. Outros países haviam usado menos alavancagem de dívida, mas tudo terminou com o cancelamento de vastos segmentos de dívidas imobiliárias e de negócios durante os Anos da Depressão. No momento em que terminou a Segunda Guerra Mundial, em 1945, a maior parte dos países estava livre de dívida. Os preços reflectiam os custos de produção directos, com desvio mínimo de receitas para o pagamento de bancos, proprietários absenteístas e outros rentistas.
No período do pós-guerra o Banco Mundial emprestou dólares a governos para a construção de infraestruturas ? só para dar meia volta uma geração mais tarde e ajudar a saquear o que havia financiado. Depois de o México e outros governos latino-americanos anunciarem que estavam insolventes, em 1982, diplomatas dos EUA organizaram uma redução da dívida na forma dos "títulos Brady". Em 1990, a Argentina e o Brasil tiveram de pagar 45% sobre a nova dívida externa dolarizada e o México pagou 23%.
Tendo encravado países do Terceiro Mundo com dívidas para além da sua capacidade de pagar, o FMI e o Banco Mundial utilizaram a sua influência de credores para forçar governos a imporem planos de austeridade draconianos que tiveram o efeito de impedir o crescimento rumo à auto-suficiência industrial e agrícola, com isso esmagando também perspectivas de competitividade. O FMI e o Banco Mundial pediram então que os países vendedores vendessem a sua infraestrutura pública, terra, direitos do subsolo e outros activos para pagar as dívidas que estas instituições patrocinaram tão irresponsavelmente. (Se os empréstimos do FMI não fossem simplesmente irresponsáveis, então eles conscientemente debilitavam as economias dos países devedores.) Isto é uma velha história de conquista, agora cumprida sem a guerra convencional.
Dois mil anos atrás Roma despojou de dinheiro a Ásia Menor e outras províncias e colónias usando força militar. A sua oligarquia financeira traduziu então o seu poder económico em poder político, destruindo a democracia e provocando os séculos sombrios da Baixa Idade Média. A lição histórica é que economias capturadas pelos credores são afundadas na depressão pois a concessão de empréstimos predatórias remove o excedente, não deixando ficar nada para subsistência, quem dirá para a renovação de capital. Isto impedi os países de pagarem as suas dívidas, levando a arrestos generalizados, uma polarização extrema da propriedade e da riqueza e ao empobrecimento do seu povo. A falta de prosperidade que daí decorre acaba por debilitar a capacidade de sustentar custos militares e tais países tendem a ser conquistados, como os godos invadiram Roma. Eles sempre estiveram às portas, do lado de fora ? mas foi o esvaziamento da economia interna de Roma que a tornou presa para conquista.
Mais recentemente, a tomada de controle dirigista patrocinada pelo credor das instituições económicas e sociais nacionais que tornaram a Rússia, os Estados bálticos e outras economias pós soviéticas em cleptocracias neoliberais, conduzindo o trabalho qualificado para o exterior em conjunto com a fuga de capital. A Letónia está empurrada outra vez rumo à vida de subsistência com base na terra. A má gestão do credor é o problema mais importante que qualquer país hoje deveria esforçar-se por impedir
Credores jogam a carta do terrorismo
O 11/Setembro assinalou o princípio de uma nova captura de poder nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Responsáveis do Reino Unidos utilizaram legislação anti-terrorista para tomar activos islandeses no exterior. O que faz isto tão irónico é que ao longo da história têm sido os credores que utilizaram violência contra os devedores, não ao contrário. Conheço apenas uma excepção e não envolveu banhos de sangue: Jesus removeu as mesas dos cambistas no templo de Jerusalém. É o único registo de um acto violento na sua vida.
Psicólogos procuram explicar a inclinação do credor para a violência pela tendência dos rentistas a lutarem por rendimento não ganho ? herança ou outra "riqueza gratuita" que obtiveram sem esforço próprio. As pessoas que trabalham para viver e são capazes de sustentarem-se por si próprias acreditam que podem sobreviver e por isso há menos da espécie de pânico que credores e outros que desfrutam almoços gratuitos sentem ao pensarem que a sua receita extractiva poderia acabar. Eles combatem apaixonadamente contra a perspectiva de terem de viver do que produzem ou do que ganham pelos seus próprios méritos. Assim, a última coisa que os rentistas realmente querem é um mercado livre. Numa ironia desavergonhada, eles tendem a acusar populações de serem terroristas se as mesmas procurarem defender-se contra credores predatórios e tomadores de terra!
Ao descrever a violência do credor, Plutarco mostra como o rei Agis IV de Esparta e o seu sucessor Cleomenes III procuraram cancelar dívidas no século III AC. Os credores da cidade-estado assassinaram Agis, levaram Cleomenes ao suicídio no exílio e mataram o líder seguinte de Esparta, Nabis ? e então apelaram a Roma para combater contra democracias pró-devedor por toda a Grécia. Tito Lívio e outros historiadores romanos descrevem como um século depois, em 133 AC, o Senado Romano respondeu a uma tentativa de reforma da dívida e da terra dos irmãos Graco precipitando aqueles senadores democráticos num despenhadeiro para morrerem, inaugurando assim um século de sangrenta guerra civil.
No século XIX os Estados Unidos enviaram canhoneiras a fim de cobrar dívidas de países latino-americanos, instalando colectores nas alfândegas locais. A Inglaterra aplicou uma força imperial semelhante para arruinar a Índia, o Egipto e a Turquia, despojando os seus activos através de dívidas e afundando as suas populações na pobreza que persiste até os dias de hoje. Mais recentemente, a mão dos EUA na violência que derrubou o presidente eleito do Chile, Salvador Allende, continuou esta política. Tendo procurado isolar a União Soviética, Cuba e outros países que rejeitaram as regras orientadas pelo credor e os interesses da propriedade rentista, os Estados Unidos culminaram a sua vitória na Guerra Fria sobre a União Soviética promovendo um regime de taxa fiscal uniforme que impôs o fardo fiscal inteiramente sobre o trabalho e a indústria, não sobre as finanças e o imobiliário. Ao invés de serem democratizados, os países pós comunistas foram dirigidos directamente para cleptocracias oligárquicas que efectuaram rapidamente a elevação das dívidas para com o Ocidente.
Isto é exactamente o oposto dos mercados livres que lhes haviam sido prometidos em 1990-91. Ao invés de crescimento económico, a economia "real" da produção e do consumo contraiu-se, mesmo quando influxos financeiros estrangeiros incharam os preços da propriedade habitacional e de escritórios, do combustível e dos serviços públicos. O imobiliário e os serviços públicos até então fornecidos gratuitamente ou a preços subsidiados foram transformados num veículo predatório para os estrangeiros extraírem rendimento, colocando a população interna a rações, tal como o que ocorre sob ocupação militar. Mas os media públicos, centros académicos e parlamentos persuadiram as populações de que isto faz parte de uma ordem natural, o resultado de como um mercado livre é suposto operar, ao invés de um retrocesso a instituições quase feudais. A ideia simplista é que fazer dinheiro é próprio do "capitalista", sem considerar se o capital industrial está a ser criado ou desmantelado e despojado.
Como os tempos difíceis afectam o povo
Relatórios de saúde pública de todo o mundo documentam como a esperança de vida encurta quando a desigualdade económica e a pobreza aumentam. A moral é que "dívida mata", ao empobrecer e destruir populações. Aqueles que se tentam defender são marcados como terroristas pelos seus predadores financeiros. A doutrina da população de Malthus, afinal de contas, foi escrita para racionalizar o almoço livre da classe de proprietários de terra e as políticas do Banco Mundial para as populações de países endividados do Terceiro Mundo foram da mesma forma o complemento natural do despojamento de activos financeiros que ele endossou. Menos pessoas para alimentar, vestir e abrigar numa situação em que os investidores procuram principalmente as empresas públicas para cuja construção os governos já haviam incorrido em dívida externa, mais terra e recursos da natureza ao invés do trabalho humano.
Em parte alguma a violência dos credores é mais declarada do que na sua destruição da educação, especialmente dos estudos económicos e do conhecimento da história. O primeiro acto dos Chicago Boys (monetaristas da Universidade de Chicago, encabeçados pelo prémio Nobel Milton Friedman) no Chile de Pinochet após o golpe militar de 1974 foi encerrar todos os departamentos de teoria económica e ciências sociais do país, excepto para a fortaleza monetarista na Universidade Católica que dominavam. A ideia era despojar a academia de qualquer ponto de vista alternativo. As coisas não são muito diferentes em outros países. Numa conferência económica pós keynesiana em Berlim sobre "financiarização" em Novembro último, ouvi muitas queixas de que visões alternativas à ortodoxia da Escola de Chicago não tinham audiência nos principais jornais académicos europeus. E exactamente neste mês de Março na reunião anual na cidade de Nova York da Eastern Economic Association, ouvi queixas semelhantes de ideias económicas alternativas eram excluídas dos principais jornais de referência nos quais os aspirantes a académicos devem ganhar entrada a fim de serem promovidos a empregos estáveis (tenures) na maior parte das universidades dos EUA. Uma Cortina de Ferro intelectual foi baixada pela ortodoxia disfuncional do "mercado livre". Evidentemente um mercado livre em ideias é anátema para os livre mercadores das finanças. Com controle intelectual tão forte, naturalmente, a violência aberta é desnecessária.
Tal intolerância intelectual está no DNS da mentalidade credora porque ela não pode aguentar a consciência e o entendimento dos seus efeitos destrutivos. O "milagre do juro composto" não é alcançável na prática para além do curto prazo. Pretender que ele pode constituir a base para um modelo sustentável de criação de riqueza violenta a racionalidade e a lógica económica. Eis porque a teoria económica que os credores preferem ? e subsidiam ? é aprender a ignorância propagandeada pelos idiotas úteis. O seu papel é desviar a atenção da mais importante dinâmica económica da sociedade, a da polarização da finança e da propriedade através da dívida, evidentemente na premissa de que o que não é visto ou analisado não será regulamentado ou tributado. Aqui se pode recordar do gracejo de Baudelaire: "O diabo vence no ponto em que convence o povo de que não existe". Um "mercado livre" para rentistas é portanto um "livre" de ideias alternativas.
Esta é a função política da teoria económica mainstream de hoje. E para coroar o assunto, a visão mundial orientada para o credor exerce violência semelhante aos ensinamentos das principais religiões do mundo.