CANTA O MERLO: Uma estratégia que contemple a saída do euro

15-01-2014

  23:13:04, por Corral   , 2361 palavras  
Categorias: Ensaio

CANTA O MERLO: Uma estratégia que contemple a saída do euro

por Salvador López Arnal
http://www.resistir.info/europa/lapavitsas_resenha_jan14.html

Um livro indispensável, assegura Alex Callinicos, para toda pessoa que tente compreender a implosão da União Europeia. Será que o professor do European Studies at King's College, de Londres, exagera? Não parece.

No mesmo sentido se pronuncia Stathis Kouvelakis na introdução do ensaio: "Isto nos leva ao ponto final mas provavelmente também o mais crucial do material reunido neste volume: não satisfeitos em oferecer uma análise pioneira das particularidades da crise capitalista dentro da eurozona, Lapavitsas e seus colaboradores do RMF foram um passo além, proporcionando o guião de uma estratégia alternativa. Este resumo começa com o incumprimento da dívida soberana... e amplia-se a uma saída unilateral do euro por parte dos países que não possam evitar o incumprimento, o que lhes permitiria recuperar o controle de uma parte da sua soberania nacional e escapar do cataclismo da desvalorização interna imposta pelas terapias de choque concebidas pela UE". (p. 25).

Crisis en la Eurozona [*] é uma versão revista de três relatórios sobre a crise da eurozona publicados online pelo Research on Money and Finance em Março e Setembro de 2010 e em Novembro de 2011 com os títulos "Empobrecendo-te a ti e ao teu vizinho", "A eurozona entre a austeridade e o incumprimento" e "Ruptura? Uma drástica saída da crise da eurozona".

Pode-se ler, se se considerar adequado, como um comentário crítico documentado a posições como aquelas defendidas por Yanis Varoufakis ? em entrevista realizada por Alessandro Bianchi [1] ? , compartilhada por amplos sectores da esquerda europeia, respondendo a uma pergunta sobre o "actual estado de coisas" na zona euro e se a melhor solução para os países europeus do Sul seria sair da moeda única. "Se pudéssemos voltar atrás no tempo, a melhor opção teria sido que os países meridionais, além da Irlanda, tivessem ficado fora da eurozona". Indubitavelmente, admite YV, "o comportamento dos poderes de facto, tanto no Norte como no Sul da Europa, dissiparam a fantasia, a que assistimos em torno de 2000, de que a eurozona evoluiria rumo a uma entidade federal, possivelmente depois de uma crise existencial ameaçar sua integridade". Dito sem rodeios, prossegue o economista grego, "nossas elites cometeram um pecado capital metendo nossas nações periféricas numa versão europeia do padrão ouro que, tal como o padrão ouro original, primeiro provocou entradas maciças de capital nas regiões de défice que incharam gigantescas bolhas e, segundo, provocou uma depressão permanente nos mesmos países do défice uma vez que arrebentaram as bolhas após o 1929 da nossa geração (ou seja, 2008)".

Aceite o anterior, admitindo o assinalado, "sair da nossa horrorosa união monetária não nos devolverá, nem sequer a longo prazo, aonde teríamos estado sem a princípio tivéssemos ficado fora". Uma vez dentro, pode ser que a fuga "empurre nossas cambaleantes economias para um precipício escarpado. Sobre tudo se se faz descoordenadamente, país por país". Por que? Porque ao contrário da Argentina em 2002 ou da Grã-Bretanha em 1931, sair da eurozona não é só questão de romper o ajuste entre nossa própria moeda e outra estrangeira. Não temos uma moeda com que desemparelharmos". Ter-se-ia necessariamente que criar "uma moeda (uma tarefa que leva no mínimo de 8 a 10 meses para completar) com o objectivo de desemparelhá-la ou desvalorizá-la". Esse atraso entre o anúncio de uma desvalorização e seu cumprimento efectivo "bastaria para devolver nossas economias à Idade da Pedra".

À Idade da Pedra é expressão de YV.

Crisis en la eurozona pretende corroborar, pois, a consideração de Vicenç Navarro na sua coluna "Domínio Público" de 31/Outubro/2013 [2] . Este escrito, aponta o professor da UPF, "assinala a necessidade e urgência de debater os méritos e deméritos de permanecer no euro, com a análise dos benefícios e custos que isso implicaria, comparando-o com os custos e benefícios de nele se manter". É urgente que se abra um debate na Espanha sobre o mérito ou demérito de sair do euro. É muito criticável, assinala VN, "que apenas exista debate sobre este tema. Inclusive em amplos sectores da esquerda apenas aparecem artigos que questionam a permanência da Espanha no euro. Daí que tal debate deveria verificar-se com ênfase especial entre as esquerdas, sem insultos, sarcasmos ou sectarismos". Entre nós, Pedro Montes ou Alberto Montero Soler (e em algumas ocasiões Juan Torres López) apoiam esta consideração.

Do mesmo modo, sustenta o doutor Navarro, "aqueles da esquerda que se opõem a sair do euro não estão a indicar como o maior problema económico (além de social) que a Espanha tem, ou seja, o desemprego, poderá ser resolvido neste país". As propostas mais avançadas neste sentido, prossegue VN, "são as propostas da Confederação Europeia de Sindicatos (CES), que avançam políticas públicas de clara orientação expansiva" com as quais ele está totalmente de acordo. Para realizá-las e levá-las a cabo, conclui, "exigem-se mudanças substanciais no contexto político do establishment que governo tanto a eurozona como o euro". A arquitectura institucional da eurozona é, por concepção e vontade dos seus dirigentes, "liberal, e é dificílimo que isso mude, condenando a Espanha ao desemprego e precariedade por muitíssimos anos". Se alguém se opõe a sair do euro, "deveria explicar como pensa resolver o enorme desemprego e a grande descida dos salários na Espanha".

Não é o único a pensar assim. Luciano Canforam transita por um caminho quase idêntico em "Cómo salir vivos de la trampa", um texto recolhido em La historia falsa y otros escritos [3] . Agora que o processo foi completado, assinala o estudioso italiano, com a criação do novíssimo Sistema Autoritário Europeu e o partido orgânico subdividido em fracções devidamente "coesionadas" não tem motivos para labutar demasiado em contendas eleitorais, a pergunta essencial é saber "sobre que ombros recairá a tarefa de propor de novo a defesa da justiça social (art. 3 da nossa Constituição) contra a lógica do lucro?" LC recorda o comentário do ex-ministro Tremonti: uma vez escritas as regras de Maastricht, Jacques Attali, um dos seus autores, comentou: "escrevemo-las de tal maneira para que ninguém possa tentar sair da moeda única". Depois de 12 anos de tudo isso, e visto que a moeda única, com tudo o que implica de carnificina social, "defende-se com a força pública e com a chantagem, a pergunta colocada anteriormente parece não só necessária como premente" na sua mais que razoável opinião.

Em termos simples, o grande classicista italiano assim resume o estado da questão: "é indispensável que renasça uma esquerda, ainda que isto corra o risco de acontecer (se acontecer) no pior contexto possível... Uma vez que o problema mais grave e urgente como sairmos vivos da armadilha do euro e dos "parâmetros de Maastricht", é evidente que um eventual ressurgimento da esquerda deveria ser cimentado sobre este terreno difícil, propor soluções factíveis, lutar para levá-las a cabo".

Voltemos pois ao texto de Costas Lapavitsas. Não é possível aqui fazer um relato pormenorizado dos conteúdos e teses deste ensaio. Como ilustração resumo o conteúdo do segundo capítulo: "A crise da eurozona tem muitos aspectos, mas é também sem dúvida uma crise de dívida". Nesta parte do livro analisam-se "as fontes, a natureza e as razões da acumulação de dívida na eurozona, especialmente depois do começo da crise financeira global". Argumenta-se a seguir que, perante uma enorme e crescente montanha de dívida, "os governo têm duas opções: deixar de pagar os serviços públicos e reduzir a despesa pública (austeridade) ou deixar de pagar aos possuidores de títulos. A última alternativa significa o incumprimento, que além disso poderia verificar-se segundo as condições ditadas pelo credor ou pelo devedor" (p. 115). Não é preciso indicar a opção tomada ? ou que foram obrigados a tomar ? pela maioria dos governos europeus.

Sobre a situação actual e as apostas das classes dirigentes europeias assinala-se o final do primeiro capítulo: "Não há sinais de que os capitalistas dos países periféricos sejam capazes de tal actuação. Trata-se de uma tarefa especialmente complicada devido ao facto de que os referidos países normalmente têm estruturas produtivas de tecnologia intermédia, ao passo que os salários reais estão acima dos seus competidores na Ásia e em outros lugares". Em consequência, existe o risco de que uma saída conservadora da situação somada a uma (neo)libertação conduza "a um estancamento prolongado acompanhado de episódios de inflação, desvalorizações sucessivas e uma lenta erosão dos rendimentos do trabalho. Daí que, na periferia, as classes dirigentes tenham em geral preferido a opção de permanecer na eurozona e transferir os custos para os trabalhadores" (p. 109).

A saída progressista da zona euro ? "uma saída sujeita a uma reestruturação drástica da economia e da sociedade" ? é vista nos seguintes termos (uma opção que não se nega que naturalmente implicaria um importante choque económico): "verificar-se-ia uma desvalorização, a qual descarregaria parte da pressão do ajuste ao melhorar a balança comercial, mas também dificultaria muito enfrentar a dívida externa". Por tudo isso seria necessário a suspensão de pagamentos e a reestruturação da dívida. "O acesso aos mercados internacionais tornar-se-ia extraordinariamente complicado. Os bancos ficariam sob uma forte pressão e tendo que enfrentar a quebra. A questão, contudo, é que estes problemas não têm que ser enfrentados da habitual maneira conservadora" (p. 110).

Não, é claro que não têm de sê-lo. "A combinação de banca pública e controles sobre a conta de capital colocaria de imediato a questão da propriedade pública sobre áreas da economia. Os pontos fracos subjacentes à produtividade e à competitividade já ameaçam a viabilidade de sectores completos de actividade económica nos países periféricos". A propriedade pública, uma velha identidade da esquerda transformadora não cooptada pelo neoliberalismo, seria necessária para evitar o colapso. "Os âmbitos específicos que se colocariam sob propriedade pública e inclusive a forma que esta tomaria dependeriam das características de cada país. Mas os serviços públicos, o transporte, a energia e as telecomunicações seriam os principais candidatos, pelo menos com o objectivo de apoiar o resto da actividade económica" (p. 111).

OS CUSTOS DE PERMANECER NA EUROZONA

De facto, tal como se assinalou, a maneira correcta de tratar o tema do euro não passa por perguntar os custos económicos e sociais de sair da moeda única. Não, não é este o ponto. "Essa é a colocação das forças conservadoras e em particular dos poderes económicos. Temos que começar por analisar os custos de permanecer na eurozona porque depois de aceitar a dura medicina dos cortes salariais, da redução da despesa pública, da subida de impostos, das privatizações e da destruição do Estado de bem-estar continuamos com uma perspectiva de estagnação económica a longo prazo". Para CL é imprescindível abandonar o euro para evitar esta estagnação, "o aumento da pobreza, a perda de direitos democráticos e de soberania nacional nos países periféricos". Não há nenhuma dúvida do seu ponto de vista de que o euro é insustentável a longo prazo. "A União Económica e Monetária representa um fracasso histórico gigantesco, que se tentou manter assumindo enormes custos sociais ao longo dos três últimos anos". Em lugar de continuar a adoptar medidas baseadas na austeridade (neoliberal) e contra o interesse dos trabalhadores e trabalhadoras, "há que tomar o controle da banca e dos fluxos de capital, o que é perfeitamente possível porque a própria UE o fez no caso de Chipre". Pode-se, pode-se. Uma medida, acrescenta, que evitaria também os ataques dos mercados e a fuga de capitais, "uma ameaça real mas com a qual tão pouco se deve exagerar".

CL insta as organizações de esquerda que pretendam continuar a ser de esquerda a que corrijam sua visão sobre a Europa, assim como também sobre o papel dos Estados modernos e a forma mais adequada para criar "um internacionalismo mais eficaz para enfrentar este ataque, sem precedentes, do capitalismo". O internacionalismo, outra noção chave da esquerda. Há mais de trinta anos, Manuel Sacristán exprimia-se nestes termos:

"O marxismo converteu-se num fenómeno universal, mais como método de solução de todos os problemas. Neste momento, a tendência é para uma interiorização, para uma nacionalização da política... No entanto, marxismo não entendeu nem as autonomias, nem os nacionalismos e muito menos os elementos subjectivos, psicológicos das sociedades. Acredita que esta crise do marxismo é definitiva?", foi-lhe perguntado. A sua resposta:

"A nacionalização da política é um dos processos que mais depressa podem levar-nos à hecatombe nuclear. O internacionalismo é um dos valores mais dignos e bons para a espécie humana com que conta a tradição marxista. O que passa é que o internacionalismo não se pode praticar realmente senão sobre a base de outro velho princípio socialista, que é o da auto-determinação dos povos... Tudo o mais que diz o Sr. nesta pergunta é pura moda neo-romântica irracionalista, efeito da perda de esperanças revolucionárias".

Na página final do livro acolhe-se uma citação de David Graeber: "Se a História mostra algo é que não há melhor maneira de justificar as relações baseadas na violência, de fazê-las que pareçam mortais, do que redefini-las na linguagem da dívida, sobretudo porque imediatamente faz com que pareça que é a vítima que está a fazer algo mau". Não está mal, nada mal, para encerrar este excelente ensaio nem sequer esta pobre aproximação que aspira, basicamente, chamar a atenção sobre a importância deste trabalho de Costas Lapavitsas e dos seus companheiros do RMF.

PS: Permito-me recomendar como leitura complementar, mais essencial e frutífera que este comentário, o artigo recente de Alberto Montero Soler: Salir de la pesadilla del euro , outro dos nossos economistas essenciais, outro dos economistas-mais-que-economistas hispânicos que navegam lucidamente contra a corrente (por enquanto) ainda maioritária.
05/Janeiro/2014

Notas
[1] www.lantidiplomatico.it, 13 de octubre de 2013 (Traducción: Lucas Antón). www.sinpermiso.info/textos/index.php?id=6370
[2] www.vnavarro.org/?p=9952
[3] Luciano Canfora, La historia falsa y otros escritos. Capitán Swing, Madrid, 2013 (Traducción de Inés Campillo Poza, Antonio Antón y Regina López Muñoz), pp. 33-34.

[*] Costas Lapavitsas, Crisis en la eurozona , Capitán Swing, Madrid, 2013, 320 p., ISBN: 978-84-941690-2-1

Lapavitsas em resistir.info:
Crise na Zona Euro , 02/Jul/12
"A Grécia tem de sair do euro e declarar a moratória da dívida" , 12/Jun/12,
A saída do euro como solução para a crise da dívida pública , 07/Jul/10
A crise do euro e a crise sistêmica global , 15/Jun/13
A crise sistémica do euro , 17/Jul/13
Para Portugal, o tempo está a esgotar-se , 11/Abr/12
Ruptura ? Uma via para sair da crise da Eurozona , 11/Nov/11
"O BCE não é a solução mágica para a crise da eurozona" , 03/Jan/12
Depois da Europa connosco , 18/Ago/12

O original encontra-se em http://www.lahaine.org/index.php?p=74246

Esta resenha encontra-se em http://resistir.info/ .

1 comentário

Comentário de: Francisco [Visitante]  
Francisco

Talvez o problema da esquerda seja mesmo essa fixação quase traumática com o “internacionalismo” e é exactamente nessa fixação que a cegueira face aos problemas locais e nacionais surge. Só existe democracia na localidade, entre as pessoas que se conhecem e compratilham laços de agregação e esses são a nível nacional nas pequenas nações a a nível regional nas grandes nações advindas de impérios idos.

A esquerda deve-se não nacionalizar mas perceber a proponderância da comunidade onde está fundamentada a democracia e os laços que a sustentam, i.e., a Nação.

A esquerda faria uma revolução se se unisse aos argumentos da direita na luta por derrubar o ultraliberalismo pagão ancorado à manipulação financeira da emissão monetária…

Há que ter coragem para exigir um sistema monetário integro à comunidade. Diga-se este é o argumento liberal para contestar os ultraliberais.

16-01-2014 @ 00:43
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