Viajar para o exterior é uma via-crúcis para os cubanos; mas não necessariamente pelos motivos que você imagina...
Por Salim Lamrani
Para viajar, cubanos são obrigados por embaixadas a ter uma quantidade de dinheiro muito acima do salário mínimo
Como todos os povos, os cubanos têm vontade de viajar e descobrir o mundo, seja como simples turistas ou para realizar um projeto pessoal ou profissional. Os obstáculos são numerosos quando se é procedente de um país do terceiro mundo, e ainda mais quando se vem dessa ilha do Caribe. Mas, ao contrário do que se pode pensa, as dificuldades não são de caráter financeiro ou político.
De fato, mesmo antes da reforma migratória adotada pelo governo de Raúl Castro em janeiro de 2013, que permite aos cubanos viajar sem autorização das autoridades, a imensa maioria das pessoas que solicitam essa permissão recebe uma resposta positiva de Havana. Assim, entre 2000 e 31 de agosto de 2012, de um total de 941.953 solicitações, 99,4% foram atendidas. Somente 0,6% das pessoas não obtiveram tal autorização.
Por outro lado, a imensa maioria dos cubanos que viaja ao exterior escolhe voltar ao país. Assim, das 941.953 pessoas que saem do território nacional, somente 12,8% decidiram se estabelecer no exterior, contra 87,2% que regressaram a Cuba (1).
A eliminação dos trâmites administrativos e burocráticos ? como a permissão de saída do território e a custosa carta-convite ?, assim como a ampliação da permanência de 11 a 24 meses, renovável indefinidamente por meio de uma simples petição em um consulado cubano no exterior, foram benéficas. Assim, de janeiro a outubro de 2012, 226.877 cubanos viajaram para o exterior, ou seja, um aumento de 35% em relação ao ano anterior (2).
Mas, agora, outro revés espera os cubanos: conseguir um visto. De fato, a obtenção do precioso documento é uma via-crúcis e constitui, hoje, a principal barreira para uma estada no exterior. As exigências são draconianas e as rejeições, numerosas.
Assim, um cubano que deseja viajar para a França tem de conseguir uma entrevista no consulado do país em Havana pelo menos um mês antes da partida, levando uma lista de documentos bastante precisa. São necessários ?uma carta de motivação por parte da pessoa que convida?, um ?atestado de acolhida da prefeitura ou a reserva do hotel com todos os gastos pagos?, uma ?cópia das últimas folhas de pagamento do garantidor ou uma declaração de imposto de renda recente?, ?toda prova de laço familiar com o hóspede?, ?cópia da carteira de identidade ou da permissão de residência na França do garantidor?, ?seguro de viagem válido durante toda a estadia?, ?confirmação da reserva de uma viagem organizada ou qualquer outro documento apropriado que indique o programa da viagem prevista?, e 60 euros para gastos administrativos, ou seja, o equivalente a três meses de salário em Cuba, não reembolsáveis.
As autoridades diplomáticas logo avisam ao potencial solicitante: ?a embaixada se reserva o direito de outorgar ou não o visto e não tem, de nenhuma forma até que o dossiê esteja completo, a obrigação de conceder um visto? (3).
As exigências são semelhantes para viajar para a Espanha. Também é necessária ?uma carta-convite de uma pessoa física, se [o turista] vai se hospedar em sua residência, expedida pela Delegacia de Policia correspondente ao lugar de residência?, a passagem de avião da volta e o mínimo de 64,53 euros diários (4).
Para os Estados Unidos, as restrições são ainda mais severas. O número de vistos concedidos é irrisório em relação às solicitações. No entanto, existe uma solução para os que não têm visto: a imigração ilegal. De fato, a Lei de Ajuste Cubano, de 1966, estipula que todo cubano que entre legal ou ilegalmente no território dos Estados Unidos, a partir de 1 de janeiro de 1959, consegue automaticamente o status de residente permanente, depois de um ano e um dia.
Durante anos, as potências ocidentais criticaram as autoridades de Havana, acusando-as de frear a liberdade de ir e vir dos cubanos. Agora vejam, enquanto Cuba suprimiu os obstáculos burocráticos como a permissão de saída e a carta-convite com a finalidade de facilitar as viagens de seus cidadãos, as embaixadas estrangeiras ergueram novas barreiras e exigem agora dos cubanos, além dos documentos habituais? uma carta-convite.
Referências bibliográficas:
(1)Cubadebate, «Cuba seguirá apostando em uma imigração legal, ordenada y segura», 25 de outubro de 2012
(2)Andrea Rodríguez, «Cubanos mais ao exterior por causa da reforma», The Associated Press, outubro de 2012.
(3)Ambassade de France à Cuba, «Les différents types de visas et les documents à présenter». http://www.ambafrance-cu.org/Les-differents-types-de-visas-et (site consultado no dia 7 de novembro de 2013
(4)Ministerio de Relaciones Exteriores, «Requisitos de entrada». http://www.exteriores.gob.es/Consulados/LAHABANA/es/InformacionParaExtranjeros/Paginas/RequisitosDeEntrada.aspx (site consultado no dia 7 de novembro de 2013).
*Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, Salim Lamrani é professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. Seu último livro se chama Cuba. Les médias face au défi de l?impartialité, Paris, Editions Estrella, 2013, com prólogo de Eduardo Galeano.
Contato: lamranisalim@yahoo.fr ; Salim.Lamrani@univ-reunion.fr
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http://www.resistir.info/europa/sair_do_euro_decaillot.html
por Maurice Decaillot [*]
A zona em que o Euro foi imposto como moeda única hoje está claramente em dificuldade profunda, ameaçadora, provocando entre as populações inquietações gravosas. Generaliza-se a exigência de nos desembaraçarmos do fardo de pressões associados ao Euro.
Chegou o momento de olhar de frente as causas desta situação. Estas ultrapassam amplamente as origens que são geralmente admitidas, tais como a dominação dos mercados financeiros e suas crises, a ambição alemã de dominação europeia, às quais acrescentam-se as críticas, muitas vezes dirigidas aos eurocépticos, de fuga egoísta ou de utopismo.
AS CAUSAS DESTA SITUAÇÃO
Uma primeira causa, fundamental mas muito frequentemente mascarada, é procurar na prática generalizada da troca mercantil, cujos desequilíbrios seculares provocam hoje as diversas distorções económicas, sociais e políticas que se verificam. Esta troca mercantil foi objecto de consagrações institucionais sem precedente ao longo das últimas décadas, particularmente a partir do Tratado de Roma assinado em 1957 pelos promotores da Europa mercantil. Ele legitimou a concorrência livre descarada em toda a actividade social, a qual foi retomada e agravada desde então pelos outros tratados europeus, descrevendo como benéfica a pressão em baixa dos preços que dela resulta, com desprezo para com o reconhecimento social, humanamente fundamental, do trabalho das pessoas activas, e reduzindo a transacção da troca a uma relação entre o decisor poderoso e o destituído subordinado constrangido à aceitação do desequilíbrio.
Este desequilíbrio resultou, em cada país, ao longo dos anos, no agravamento das distorções sociais. O mesmo desequilíbrio resultou, nas relações entre países com características económicas e sociais diferentes, no aprofundamento das distorções económicas, afundando os países desfavorecidos na dependência, em benefício de oligarquias mundiais reforçadas.
Na mesma lógica, uma causa suplementar agravou a situação. Na Europa, após décadas de reforço destas tendências, o abandono das moedas nacionais e a passagem ao Euro pôs em concorrência directa, brutal, as pessoas de países com níveis de actividade visivelmente já diferentes, com a concorrência acentuada conduzindo os mais fracos, nomeadamente no Sul da Europa, a uma deterioração agravada da sua situação.
A concorrência mercantil não limita seus efeitos ao acentuar das distorções entre actores sociais. Ela também tem como efeito, ao desvalorizar amplamente as produções ditas competitivas, promover a guerra de todos contra todos, reduzir os rendimentos de actividades, sufocar produções, levar a reduções de salários, às eliminações de actividades e de empregos, ao enfraquecimento das remunerações e, assim, à deficiência dos mercados solváveis e ao seu próprio agravamento, ao esmagamento dos recursos necessários aos indispensáveis serviços públicos, em seguida ao recurso paliativo aos financiamentos especulativos considerados arriscados, às monopolizações (accaparements) oligárquicas de mercados e de posições dominantes por parte dos grupos poderosos. Recordemos desde já: longe da ideia por vezes afirmada de uma "destruição criadora", a ligeira vantagem momentânea de uma baixa de preço paga-se com pesados danos em perdas de salário, de emprego, de rendimento, de solvabilidade; cada ganho em partes de mercado, depois em tarifas de posição dominante, tem como pesada contrapartida os numerosos perdedores da competição mercantil capitalista.
Assim, a acentuação brutal pelo Euro da concorrência na Europa mercantil aumentou fortemente em cada país os desequilíbrios sociais. Ela também, de modo cada vez mais visível, cavou os fossos entre os diferentes países.
Ainda na mesma lógica, uma causa suplementar foi acrescentada às anteriores. A unificação da moeda foi acompanhada de uma monopolização do controle da estratégia monetária exclusivamente pelo Banco Central Europeu. Este, conforme um princípio defendido há séculos pelos meios mercantis, escapa a todo controle político e conforma a sua acção apenas às expectativas do mundo comercial e financeiro. Devido a esta aceitação, por parte das instituições europeias, desta subtracção da moeda à vontade democrática, os povos são assim privados de uma ferramenta essencial, que deveria ser a adaptação da emissão monetária às evoluções da actividade real que permite aos povos viverem. Assim foi instituído o absolutismo mercantil, impondo automaticamente aos Estados que conformassem sua acção às exigências do mercado dos negócios.
Destas mesmas causas resultam as pressões que, ao comprimirem os salários e as despesas públicas, pressionam à intensificação da exploração dos trabalhadores, ao seu despojamento e à sua dependência e, dessa forma à acentuação em circuito fechado da própria concorrência, inclusive entre trabalhadores, à escala nacional e mundial. Já se vê, com a frequência e a amplitude acrescidas dos protestos em diversos países, que esta evolução não pode conduzir, sob formas diversas, senão a movimentos sociais importantes, obscurecendo danosamente suas perspectivas.
Na mesma linha, uma quarta causa acrescenta-se às anteriores. Abandonando o terreno europeu minado pela sua dominação, os capitais europeus são investidos amplamente no exterior, tanto para os países tornados "emergentes" e, para alguns, excedentários por força (provisória) dos baixos preços e baixos salários, como para a economia americana mantida por uma bolha financeira em dólares alimentada por excedentes chineses da mesma proveniência. Esta exportação de capitais europeus multiplicou assim a concorrência mundial e dessa forma, entre outras, sufoca a própria economia europeia.
Eis porque a saída do Euro deveria ter como objectivo não a atracção de capitais vindos daqui e de outros lados em busca de oportunidades de extorsão, mas sim a mobilização dos trabalhadores de todos os domínios, com a perspectiva de dotá-los dos meios necessários para realizar o aumento necessário das actividades socialmente úteis.
Parece portanto necessário prever um escape aos desequilíbrios, distorções e danos que hoje se agravam.
COMO ENFRENTAR?
Vamos mostrar que é necessário, como preconizam actores cada vez mais numerosos, sair do Euro. Tentaremos também mostrar que isso estaria longe de ser suficiente; que as apostas de hoje são mais importantes e devem conduzir ao esboço a partir de agora das vias para uma saída do capitalismo.
O objectivo de uma saída do Euro deveria ser permitir aos povos reencontrarem aquilo que construíram na sua longa história e de que foram privados pela sua imersão na guerra económica mundial: sua capacidade social de assegurar duradouramente e solidariamente a sua vida. Esta seria a verdadeira condição para um acesso do mundo às cooperações necessárias, bem mais que "governações" oligárquicas, para o futuro da humanidade e do planeta.
Convém para isso que surjam as práticas que assegurem um equilíbrio coerente entre os povos ou, disto de outra forma, uma equidade entre povos. Evocaremos as exigências para tal.
A SAÍDA DO EURO O PERMITIRIA?
Esta saída, para o Franco ou para uma nova moeda, acompanhada da sua desvalorização, por vezes proposta, não faria senão recolocar o país na concorrência mundial, na mesma posição que experimentam países em "desenvolvimento" como a China e outros, onde os dominantes ganham mercados e fazem lucros vendendo sob moeda fraca, e portanto a baixo preço para os compradores, os produtos de assalariados fortemente sub-remunerados, que trabalham arduamente para a exportação desvalorizada, em detrimento das actividades úteis aos seus concidadãos. O custo acrescido das importações evitaria, é verdade, importações inúteis, injustamente invasivas, mas encareceria também importações úteis e assim impulsionaria as empresas capitalistas importadoras a procurar mercados externos vantajosos, ao preço de uma compressão dos salários nacionais.
As experiências passadas mostram que se as desvalorizações competitivas puderam, nos tempos da concorrência ainda limitada, permitir alguns períodos de ascensão capitalista em certos países (Estados Unidos, Japão, Coreia, ...), elas relançaram a concorrência no campo nacional, tendo por consequência desequilíbrios sociais acrescidos. A estratégia de uma desvalorização competitiva no contexto actual da concorrência mundial intensificada não poderia senão conduzir, sob formas modificadas, aos mesmos danos económicos e sociais já sofridos.
Sublinhemos a propósito que as isenções de impostos e encargos reclamados pelo patronato, não podendo nunca comparar-se aos efeitos dos ganhos de produtividade dos rebaixamentos salariais, não permitem senão vantagens concorrenciais marginais e momentâneas, contribuindo para acelerar a corrida guerreira para uma competitividade destruidora de rendimentos, em detrimento dos assalariados e das populações, que arcam com o peso.
A dominação do Euro pelas actuais autoridades europeias serve de base às estratégias europeias. Observam-se suas profundas contradições internas.
Por um lado, são tomadas todas as disposições para impor cada vez mais fortemente o dogma da concorrência, como se vê por exemplo na obrigação estabelecida ao governo francês de impor à EDF, por uma lei aplicada em 1 de Janeiro de 2011, a revenda a baixo preço aos seus concorrentes, pretensamente desfavorecidos, de uma parte da sua produção supostamente para restabelecer sua capacidade concorrencial. As consequências, brutalmente destrutivas de rendimentos, empregos, serviços público e por isso de riqueza social, as quais muitas vezes são negadas, estão na origem dos danos económicos e sociais constatados. Ao mesmo tempo, as autoridades europeias, em nome do pretenso equilíbrio dos orçamentos públicos nacionais de cujo controle se arrogam, recusam os meios para reparar os desgastes assim provocados, nomeadamente aos membros mais fracos.
O autoritarismo europeu, de que o Euro é um meio essencial, cava o fosso onde se afunda a Europa, impedindo qualquer saída do impasse. Um federalismo europeu, acentuando o autoritarismo oligárquico, não poderia senão endurecer.
Sublinhemos a respeito que o remédio por vezes preconizado ? a alimentação por um orçamento federal de grandes obras europeias que supostamente estimulariam um crescimento pós keynesiano ? não poderia resultar, no ambiente concorrencial, senão num desperdício suplementar faraónico não procurando, sob o pretexto do "desencravamento", senão novos apoios aos fluxos mercantis dominantes, bem distante das necessidades sociais.
A necessidade de sair do Euro está portanto bem presente, pelas razões que se seguem. Diz-se: um efeito do Euro foi por em concorrência directa e brutal os países europeus, num quadro que faz deste estado de coisas um constrangimento incondicional para os Estados participantes. A isto acrescentam-se os outros constrangimentos associados, ligados aos tratados e às instituições da Europa mercantil oficial. Uma conclusão a tirar de tudo isto é que uma evolução eficaz para o equilíbrio viável entre os povos deveria visar a saída das práticas mercantis concorrenciais, para por no seu lugar modos de cooperação internacional que visem a equidade.
DEIXAR O EURO, UMA RETIRADA NACIONAL ESTÉRIL?
Qual seria a situação de um país tendo deixado o Euro a fim de equilibrar seus intercâmbios? O que deveria ele fazer para isso e o que teria de enfrentar?
Ninguém hoje pode esperar ? quando os grandes fluxos internacionais de riqueza são controlados pelos grandes grupos capitalistas mercantis mundiais ? uma evolução mundial geral para a equidade internacional num prazo visível.
Um novo actor que, por opção democrática, se orientasse para a equidade deveria portanto, para enfrentar os problemas actuais, avançar para as seguintes acções:
Aceitar encarar frontalmente o facto de que os eventuais parceiros dos intercâmbios internacionais podem reagir com duas lógicas muito diferentes. Certos parceiros, inteiramente acantonados na lógica mercantil concorrencial e oligopolista, recusarão toda parceria, afastando-se, e estarão prontos a aplicar aos seus adversários procedimentos hostis: normas constrangedoras fortemente desequilibrantes, recusa de parceira... Outros parceiros aceitarão acordos fundamentados no equilíbrio de todos, definidos com reciprocidade, propondo modalidades de intercâmbio específicas.
Tomar as disposições necessárias para que as medidas hostis, mal intencionadas, fundamentadas no agravar do afrontamento comercial e oligopolístico, sejam contrapostas por medidas em relação a estes interlocutores. Estas disposições poderiam consistir nomeadamente em direitos alfandegários modulados, se necessário elevados, mesmo dissuasivos, em quotas por domínios, em controles estritos dos fluxos financeiros de saída e de entrada com o parceiro em causa.
Estabelecer com os parceiros favoráveis relações de reciprocidade, de equidade, tendo como fim explícito o equilíbrio dos intercâmbios e a possibilidade para cada parceiro de escolher livremente, neste quadro, os intercâmbios que lhe forem úteis. Uma tal opção poderia comportar, por acordo comum:
? Um acordo monetário estabelecendo uma taxa de câmbio entre parceiros, fundada na relação entre produtividades médias dos conjuntos afectados, assegurando as condições médias da equidade entre parceiros.
? Em caso de défice com o parceiro, direitos alfandegários adaptados a cada produto tendo em conta a importância e a utilidade reconhecida do produto nos intercâmbios, e o peso do défice, estimulando os actores a aproximarem-se da situação de equilíbrio.
? Um controle dos fluxos monetários entre parceiros, emitindo para os actores, para um período definido, autorizações de compra junto ao parceiro, tendo em conta vendas observadas ou previstas.
Ao contrário das alegações muito frequentemente repetidas, tais disposições não conduziriam a um "recuo egoísta" dos seus promotores, mas facilitariam ? ao mesmo tempo que a renovação de actividades locais, nomeadamente industriais, mas também outras ? a reequilibragem de todos os participantes, em benefício de todas as populações locais que poderiam ser melhor remuneradas e beneficiar de actividades que correspondessem às suas necessidades. Assim seria reencontrado o caminho real para o que constrói as nações: não primeiro a "identidade" hoje reciclada, mas primeiro a solidariedade entre cidadãos, de que os Estados nacionais se assumem como responsáveis; devendo este ser apoiado na equidade entre parceiros sociais, assim como entre povos. Poderiam assim dissipar-se as cegueiras que hoje alimentam as opiniões de extrema-direita na Europa.
MAS SERIA ISTO SUFICIENTE?
Uma moeda nacional permitiria financiar as capacidades nacionais hoje sufocadas para responder de modo equitativo às necessidades nacionais. Isto seria indispensável, mas bastante insuficiente.
a) As lutas necessárias e as mudanças possíveis
É manifesto que os grupos dominantes mercantis capitalistas não aceitarão nunca as regulações aqui encaradas e que, enquanto mantiverem sua dominação, manterão igualmente as pressões ideológicas inculcando nas populações a ideia de que não há nenhuma alternativa.
Evocam-se certas esperanças por vezes exprimidas de um domínio da moeda nacional que, por si só, permitiria um desenvolvimento dos serviços públicos e, por isso, criaria empregos e assim reanimaria um sector capitalista que se tornaria capaz de relançar o crescimento e o emprego. Isto deixa de lado, como é o caso frequente, a pressão concorrencial que alimenta os capitais e os seus efeitos comerciais, sociais, orçamentais, financeiros na actual economia capitalista mundializada.
Sublinhemos que, ao contrário de certos pontos de vista, muitas vezes inspirados em Keynes, um domínio soberano da moeda é certamente muito necessário ao acompanhamento das actividades, mas também muito insuficiente para assegurar o equilíbrio dos intercâmbios, a ausência de inflação ou de deflação. A moeda, mesmo nacional, torna os bens em oferta aparentemente comparáveis entre si, mas não assegura por si mesma a equidade das transacções e portanto não sana as práticas mercantis concorrenciais, fontes reais da violência dos negócios.
A este respeito, formulamos aqui algumas precisões breves sobre questões de fundo. A vida humana pereniza-se permitindo a cada um viver do trabalho dos outros na sua diversidade. Isto necessita de um equilíbrio dos intercâmbios sociais, difíceis de encontrar e de construir, procurado ao longo dos séculos e dos milénios. A transacção mercantil é uma das ferramentas surgidas nesta função. Ela é marcada por forte defeito, pois dissocia o trabalho feito da sua avaliação, acantonada na estimativa monetária aparente, sob a influência da potência dos parceiros, dessolidarizando assim as pessoas e as sociedades. Apesar disso ela pôde, nas sociedades antigas que viviam próximas umas das outras, contribuir para manter, muitas vezes de modo caótico, vidas sociais ainda fortemente convencionais. Contudo, no decorrer do tempo, e à medida da complexificação da vida social, as práticas mercantis provocaram ao longo da história crescentes distorções económicas, sociais, políticas e as crises associadas. No nosso tempo, quando a prática mercantil invadiu o mundo inteiro, suprimindo as escapatórias de antigamente, e quando as tecnologias aceleraram a ritmos sem precedente tanto as mudanças técnicas como os intercâmbios sociais, as taras do afrontamento concorrencial de todos contra todos tornam-se insuportáveis para as sociedades humanas. Uma nova necessidade profunda é a de avaliações dos bens e serviços, não mais privados, subordinados às relações de poder dos parceiros mas sim avaliações fundamentalmente equitativas, respeitando o trabalho de cada um, admitidas em comum, para vantagem de todos.
Eis porque a colocação em prática de actividades económicas novas, instalando a equidade nos intercâmbios e o domínio dos seus meios pelos trabalhadores, é um elemento essencial de uma transformação.
Eis porque se propõe aqui que ? sem esperar um consenso internacional hoje visivelmente inacessível, e igualmente sem esperar que triunfem, ao nível nacional, as ideias da possibilidade de uma mudança profunda, e sem esperar tão pouco que seja adoptado o conjunto, inevitavelmente complexo, das leis e regulamentos para isso necessários, inclusive os novos "direitos" muitas vezes reclamados ? sejam tomadas iniciativas, em proximidade com a população, pelos actores motivados da vida económica essencialmente da economia social, da vida associativa e mutualista, e da vida política, nomeadamente local, que desemboquem, com os inevitáveis limites iniciais, em realizações concretas, visíveis, colectivas.
b) intervir não só nos intercâmbios mundiais mas também nos intercâmbios interno ao conjunto nacional
Eis porque propomos que, desde já, sejam tomadas iniciativas populares de estabelecimento de redes de vida económica e social solidária, equitativa, democrática, concretizando para as populações a possibilidade de uma outra vida social, desembaraçada das devastações do afrontamento mercantil e da exploração capitalista, reavivando a aspiração humana multi-milenar à reciprocidade, a convivialidade, à viabilidade social.
Sabemos pois que para alcançar o êxito não bastará alimentar estas iniciativas em meios financeiros, ainda que saídos do negocismo e modulados de acordo com boas intenções, mas que para isso o estabelecimento de novos modos de intercâmbio é indispensável. Isso implica que os intercâmbios internacionais não sejam os únicos que devem se transformar, mas também os intercâmbios internos, locais e nacionais, que deverão também eles escapar à guerra concorrencial e aceder, sob formas a elaborar em comum, à equidade respeitadora do trabalho feito.
Esta é igualmente a condição para que reapareça uma moeda nacional emitida à medida das necessidade sociais democraticamente definidas e geridas, não submetidas às flutuações e inchaços especulativos, à inflação dos preços, aos inchaços das bolhas financeiras e aos mergulhos dos crashs financeiros, às distribuições tecnocráticas, estatistas autoritárias, e que permita uma reavaliação profunda das dívidas externas, incluindo a anulação de todas as dívidas financeiras ligadas ao círculo vicioso do endividamento financeiro tendo pretendido salvar o Estado, e também as empresas públicas, dos défices induzidos pelo negocismo mercantil e financeiro. Isto implica a utilização da economia de critérios e objectivos sociais democraticamente definidos.
Estes novos intercâmbios são necessários para assegurar o acesso a uma nova via das actividades económicas, e igualmente para permitir, por uma justa valorização dos recursos criados pelo trabalho, o avanço cada vez mais necessário de serviços públicos democratizados, à medida das necessidades sociais.
É para aceder a esta nova via que é desde hoje necessário sair do Euro, não só da ordem liberal mas, ainda mais, da lei de ferro da concorrência mercantil agonística, do confisco capitalista dos meios de actividade e da dominação exploradora dos homens, da monopolização oligárquica dos poderes, do sufocamento dos serviços públicos, da desumanização da cultura, da subjugação negocista das comunicações e dos lazeres, a fim de devolver ao povo da França e de alhures a soberania que garante, através da equidade, a solidariedade, a democracia, sua capacidade fundamental para construir sua vida social, em benefício de toda a humanidade.
13/Agosto/2013
Economista, membro do PCF, autor de:
Le Juste Prix. Etude sur la Valeur-travail et les Echanges équitables. Editions L'Harmattan, 2003;
L'Economie équitable, un nouveau Projet de Société. Editions L'Harmattan, 2010.
O original encontra-se em http://lepcf.fr/SORTIR-DE-L-EURO-OUI-POUR-SORTIR
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://www.aporrea.org/internacionales/n239072.html
Por: Natural News
31 de Outubro de 2013.- As autoridades de Gram-Bretanha confirmaram pola primeira vez que umha menina foi introduzida no país especificamente para que os seus orgaos pudessem ser extraídos e vendidos a receptores ricos.
Segundo o diário britânico The Telegraph, a menina anónima foi levada ao Reino Unido desde Somália, com o intuito de eliminar os seus orgaos e vendê-los a quem buscam desesperadamente um transplante.
Organizaçons de protecçom da infância advertiram que era pouco provável que o caso seja um facto isolado já que os traficantes eram propensos a passar de contrabando a um grupo de crianças no país.
O terrível caso saiu à luz através de um relatório do governo que mostrou que o número de vítimas de trânsito humano no Reino Unido haver aumentado mais de um 50 % desde o ano passado, e agora chegou a níveis marca.
Ao todo, 371 crianças foram exploradas em várias formas, com a maioria sendo utilizado como escravos - para o sexo e de outras maneiras.
O relatório do governo indicou que 95 crianças procediam de Vietname, 67 da Nigéria e 25 da China. Mais crianças foram introduzidas de contrabando desde Rumania e Bangladesh, entre outros países.
"As cifras também detalham como 20 jovens britânicas foram vítimas de trânsito humano", di o diário. "Isto ocorre depois de umha série de casos judiciais nos que jovens britânicas foram violadas e exploradas por bandas de homens asiáticos".
Organizaçons britânicas de protecçom da infância advertiram que bandas criminais estám a tratar de explorar a demanda de transplantes de orgaos no país.
"Traficantes estám a explorar a demanda de orgaos e a vulnerabilidade das crianças. É pouco provável que um traficante vai tomar este risco e trazer umha só criança no Reino Unido. É provável que foi um grupo", expressou Bharti Patel, chefa executiva de ECPAT UK, umha organizaçom de protecçom infantil.
A Organizaçom Mundial da Saúde di que até 7.000 riles obtém-se ilegalmente cada ano em todo mundo polos traficantes.
E ainda que existe um mercado negro para outros orgaos - coraçons, pulmons, fígados - os riles som os mais cobiçados, porque um rim pode ser retirado de um paciente sem que sofram muitos efeitos nocivos (a menos que, por suposto, mais adiante na sua vida o ril restante lese-se ou falhe).
O processo implica a umha série de pessoas, entre elas o recrutador que identifica à vítima, a pessoa que organiza o transporte, os profissionais médicos que realizam a operaçom e o vendedor que comercia o orgao.
Todo isto requer infra-estrutura - e muito dinheiro.
http://actualidad.rt.com/economia/view/109469-eeuu-necesitar-guerra-prosperar-economia
EE.UU. alcançou evitar umha falta de pagamento, mas isso nom significa que vá a prosperar. A sua economia experimenta a segunda pior década desde há 200 anos e para remediar a situaçom necessitaria umha guerra para a que nom tem recursos.
EE.UU. arrasta muitos problemas económicos. A semana passada o presidente de EE.UU., Barack Obama, assinou o projecto de lei que elevou o teito da dívida estadounidense e pôr fim ao feche parcial do Governo federal. Ademais, apesar de que se evitou a queda do PIB em 10%, como prognosticava o economista Paul Krugman, quase nom se pode dizer que a economia de EE.UU. mostre um rápido crescimento e experimente umha recuperaçom completa, indicam expertos de Finmarket.
O blogue ZeroHedge sabe que pode acelerar dramaticamente o crescimento do PIB de EE.UU., mas é pouco provável que este método seja de interesse para os cidadaos do país: outra guerra.
Em 223 anos o crescimento média do PIB em EE.UU. foi de 3,8%. Com 1,9%, a década 2000-2010 foi a segunda pior na história de Estados Unidos no que di respeito a crescimento do PIB.
"A pior desde 1790 foi a década de 1930 que foi seguida -algo que muitos esperam agora- por umha explosom de crescimento que se produziu na década de 1940", explicam os peritos de ZeroHedge.
Mas, que foi o que contribuiu à recuperaçom económica? "A triste, mas muito certa realidade da guerra", contestam os peritos de ZeroHedge que, no entanto, concretizam: "O financiamento será desta vez um problema".
O volume da dívida pública de EE.UU. superou pela primeira vez na história os 17 bilions de dólares. Nem sequer o compromisso sobre a elevaçom do teito de dívida salvará a EE.UU. das conseqüências da falta de pagamento, afirmam os analistas. De facto, EE.UU. vai voltar ao mesmo ponto morto o próximo 7 de Fevereiro, quando tenha que aprovar a sua próxima elevaçom do teito de dívida.
por C. J. Polychroniou [*]
A União Europeia (UE) é uma organização baseada num tratado que foi estabelecido após a II Guerra Mundial como meio de pôr fim à prática favorita dos europeus: dirimir as suas diferenças nacionais através de guerras sangrentas. A experimentação europeia ? a formação de um Mercado Comum, [1] que conduziria à união económica e monetária ? ficou ligada a alguns resultados notáveis: a Europa experimentou seu mais longo período de paz desde o fim da II Guerra Mundial e a guerra entre estados-membros europeus agora parece altamente improvável. Naturalmente, altos responsáveis da UE nunca perdem uma oportunidade para recordar ao público este feito sempre que as políticas da "nova Roma" são questionados por uma cidadania europeia já farta de processos autoritários de tomada de decisão, salvamentos de bancos mascarados como salvamentos nacionais, políticas de austeridade e a pilhagem dos países devedores pelo centro. [2]
A ausência de guerra entre países europeus na era do pós guerra e os movimentos históricos rumo à integração europeia que levaram à formação da eurozona apontam, no entanto, na direcção de uma correlação e não de uma relação causal entre estas duas variáveis. Indiscutivelmente, a própria natureza e estrutura do sistema mundial que emergiu na era do pós guerra ? com os Estados Unidos alcançando o status de super-potência, a ameaça soviética, a formação da NATO e a utilização de armas nucleares para manter um equilíbrio de poder ? minimizou substancialmente as perspectivas de novas guerra entre inimigos tradicionais da Europa. Talvez haja mesmo algo a ser dito aqui acerca do impacto muito profundo que a II Guerra Mundial deve ter tido sobre as consciências de líderes da Europa e o seu público.
A experimentação europeia de integração ? desde a Comunidade Económica Europeia (CEE) à UE de hoje ? alegadamente também fez uma grande diferença positiva no desenvolvimento económico e social de estados-membros europeus, incluindo os da periferia. Esta afirmação é altamente discutível, se não mesmo um exagero absoluto. O livre movimento de capitais, trabalho e bens dentro da UE funcionou bem por algum tempo ? para o capital financeiro, por um lado, e, por outro, para o núcleo de países que tinham uma vantagem competitiva desde o princípio. Embora grandes benefícios se hajam acumulado para aqueles que se aproveitaram plenamente (capitalistas internos também) da era da financiarização, a ilusão da convergência e de padrões de vida mais elevados para todos foi estilhaçada, com tendências de desigualdade a crescerem substancialmente tanto dentro como entre estados-membros.
Para que não esqueçamos: as fraquezas económicas da Europa já eram evidentes na década de 1970, apesar da explosão de acordos intra-CEE durante este período. O Acto Único Europeu (AUE) de 1986 foi uma reacção política da parte da CEE à crise estrutural que então confrontava os 12 estados-membros em vias de ser tornarem "um mercado sem um estado". Com a maior parte dos estados-membros tendo já abandonado o keynesianismo (Jepsen e Pascual 2006, 52), o AUE era uma tentativa desesperada de aumentar a "competitividade" e promover lucros corporativos, e cimentou o fim da era do "capitalismo administrado" na Europa. [3] Ao invés de protecções sociais e crescimento através de políticas tributárias orientadas, foi a mentalidade de mercado que passou a dominar. A estabilidade de preços substitui a ênfase nos empregos e a "reforma do mercado de trabalho" tornou-se a nova doutrina. O AUE também abriu o caminho para a privatização maciça e a liberalização dos mercados financeiros.
O "capitalismo de livre mercado" chegou à Europa. O capitalismo de livre mercado é, naturalmente, um dos grandes mitos do nosso tempo (Chang 2008, 2012). O neoliberalismo ? a formulação político-ideológica e o projecto económico para o avanço de mercados "livres" ? é acima de tudo um assalto corporativo/financeiro ao estado previdência e ao padrão de vida das classes trabalhadoras, baixa tributação para as corporações e os ricos, aumento da exploração do trabalho, mobilidade irrestrita do capital e posicionamento estratégico do capital para novas oportunidades de mercados através da remoção de barreiras políticas e económicas internas. O neoliberalismo não acaba com o estado, mas ao invés disso posiciona o estado para servir exclusivamente os interesses do capital. Ao nível global, o objectivo do neoliberalismo é enfraquecer o poder do estado em economias periféricas através da assistência e colaboração da elite política interna, a qual, em contrapartida, ganha acesso mais directo aos recursos e riquezas das economias em questão. Essencialmente, portanto, o neoliberalismo representa uma doutrina ideológica propagada e imposta pelos países do núcleo sobre os da periferia, enquanto o "núcleo" reserva-se o direito de praticar políticas proteccionistas em casa (e muitas vezes o faz) em benefício das suas próprias indústrias favoritas e negócios oligopólicos. Portanto, o AUE não deveria ser visto como uma estratégia de "livre mercado" super abrangente da parte da CEE. Sua remoção de barreiras para a expansão do "livre comércio" era limitada a países europeus; países de fora do mercado europeu foram excluídos. Mesmo hoje, países pobres da América Latina e da África consideram quase impossível penetrar o mercado europeu com seus produtos agrícolas.
Além disso, tal como com a promoção de qualquer projecto neoliberal, e em agudo contraste com a retórica oficial, às instituições a que falta qualquer responsabilidade e legitimidade foi atribuída importância fundamental desde o princípio do movimento rumo a uma "Europa anti-social" (Parsons 2010). Portanto não é um acidente que a UE se tenha tornado um enorme labirinto burocrático, completamente afastada do escrutínio público e totalmente irresponsável perante os seus cidadãos. Sua natureza não democrática (se não anti-democrática) é especialmente gritante e tem piorado ao longo do tempo. [4] O Parlamento Europeu é uma instituição politicamente impotente pois todas as principais actividades legislativas são empreendidas pelo Conselho de Ministros ? uma instituição com nenhuma legitimidade democrática qualquer que seja uma vez que os seus membros exercem um papel no interior da UE para o qual não foram eleitos nem mesmo indirectamente. A Comissão Europeia é outra instituição não eleita que possui muito poder político.
A UE está concebida de modo a facilitar a satisfação directa das necessidades e preocupações de interesses poderosos e não os do cidadão comum. Tal como o famoso "princípio da subsidiaridade", introduzido como artigo 3b no Tratado Estabelecendo a Comunidade Europeia e posteriormente incorporado no Tratado de Maastricht (ver abaixo) como artigo 5 ? e que muitos continuam a tratar como prova da natureza democrática do processo decisional na UE ? é mais uma ilusão de óptica do que qualquer outra coisa. O "princípio da subsidiaridade" não assevera, como muitas vezes é afirmado, que as decisões serão tomadas no nível mais baixo possível, mas sim que "a Comunidade entrará em acção, de acordo com o princípio da subsidiaridade, somente se e na medida em que os objectivos da acção proposta não possa ser suficientemente alcançado pelos Estados Membros e possam portanto, devido à escala ou efeitos da acção proposta, ser melhor atendidos pela Comunidade".
O que agora está a tornar-se muitíssimo claro é que todas as principais decisões da UE são tomadas ao nível de topo por responsáveis não eleitos ao passo que os cidadãos nacionais são relegados a um status igual ao desfrutado pelos súbditos da antiga Roma. Na actual crise de dívida da eurozona, mesmo os chefes dos estados-membros endividados têm muito pouco a dizer no processo de tomada de decisão, com o ministro alemão das Finanças a comportar-se como um César.
O tipo de processo de europeização que foi desencadeado desde a assinatura do Tratado de Maastricht em 1992 é completamente alheio à visão de uma Europa social e democrática. Este desenvolvimento também tem tido um impacto catastrófico sobre a capacidade de governos nacionais tratarem eficazmente as necessidades específicas das suas próprias economias e sociedades, como se confirma brutalmente pela actual crise económica global.
O Tratado de Maastricht incorporou as ideias e princípios chave que estavam incluídos no AUE e prosseguiu com a institucionalização formal de um quadro neoliberal para a direcção futura das economias europeias, incluindo o estabelecimento de uma união monetária e um Banco Central Europeu (BCE). [5] Na essência, o tratado formalizou o impulso rumo à "Europa anti-social" e esboçou de uma maneira específica os passos a serem dados para a adopção de uma moeda única (a transição para a formação de uma União Monetária Europeia [UME] devia envolver três etapas entre 1993 e 1999, quando ocorreu o lançamento oficial da eurozona). De acordo com o tratado, o qual procurava permitir que apenas bons candidatos aderissem à UME, qualquer economia europeia em convergência tinha o direito de adoptar o Euro, desde que:
- sua taxa de inflação não estivesse mais do que 1,5 por cento acima da média das três taxas de inflação mais baixas entre países da UE;
- sua dívida e défice governamental não fossem mais do que 60 por cento e 3 por cento do seu PIB, respectivamente;
- houvesse aderido ao mecanismo de taxa de câmbio do Sistema Monetário Europeu e mantivesse margens de flutuação normal das taxas de câmbio durante dois anos sem que disso decorressem tensões graves; e
- sua taxa de juro a longo prazo não estivesse mais do 2,0 por cento acima daquela dos três países com a mais baixa taxa de inflação. (Ver Mulhearn 2005, 59.)
Todos estes números foram obtidos de modo arbitrário. Por que deveriam os défices terem sido de 3 por cento e a dívida nacional de menos de 60 por cento do PIB? Dado o papel dominante do deutsche mark na época, provavelmente é uma boa suposição imaginar que os números foram uma invenção do Bundesbank ? assim como a concepção do BCE, com sua gritante omissão da função de prestamista de último recurso. De certo modo, no entanto, estes números também eram virtualmente sem significado pois foram sistematicamente violados pelos estados que procuravam aderir à UME ? incluindo, em primeiro lugar e acima de tudo, a própria Alemanha. Mas pelo caminho, quando as coisas se encaminharam para o Euro, estas referências para rácios de défices e dívida em relação ao PIB demonstrar-se-iam como ferramentas muito úteis para impor a ortodoxia económica alemã.
A adopção de uma moeda única foi saudada pelos defensores do Euro como a maior experimentação da história financeira. Deveria na verdade ter sido apregoada como a mais selvagem experimentação da história financeira: a eurozona devia incluir estados independentes, com sistema económicos e padrões culturais altamente diversos, aos quais foi exigido abandonar a soberania monetária nacional substituindo-a por uma divisa "estrangeira" sem o apoio de um Tesouro ou um Banco Central pronto para actuar como prestamista de último recurso no caso de uma crise financeira.
Wynne Godley, aliás um advogado da integração política europeia, de modo sagaz apontou as deficiência incluídas no Tratado de Maastricht num ensaio em 1992 na London Review of Books:
A ideia central do Tratado de Maastricht é que os países da CE deveriam caminhar para uma união económica e monetária, com uma moeda única administrada por um banco central independente. Mas como será dirigido o resto da política económica? Como o tratado não propõe novas instituições além de um banco europeu, seus promotores devem supor que nada mais é necessário. Mas isto só poderia ser correcto se as economias modernas fossem sistemas auto-ajustados que não precisassem de todo de qualquer gestão.
Sou levado à conclusão de que uma tal visão ? de que economias são organismos auto-correctores que em quaisquer circunstâncias precisam de serem administrados ? na verdade determinou o modo pelo qual o Tratado de Maastricht foi estruturado. Trata-se de uma versão bruta e extrema da visão que desde há algum tempo tem constituído a sabedoria convencional da Europa (embora não a dos EUA ou do Japão), de que governos são incapazes e, portanto, não deveriam tentar, alcançar quaisquer dos objectivos tradicionais da política económica, tais como crescimento e pleno emprego. Tudo o que pode ser feito legitimamente, de acordo com esta visão, é controlar a oferta de moeda e equilibrar o orçamento. Isso levou a que um grupo em grande medida composto por banqueiros (o Comité Delors) chegasse à conclusão de que um banco central independente era a única instituição supra-nacional necessária para dirigir uma Europa integrada e supra-nacional.
Mas há muito mais quanto a isto tudo. É preciso enfatizar à partida que o estabelecimento de uma moeda única na CE na verdade poria fim à soberania dos seus países componentes e ao seu poder para tomar uma acção independente sobre grandes questões. Como o sr. Tim Congdon argumentou muito convincentemente, o poder para emitir a sua própria moeda, para se financiar no seu próprio banco central, é a principal coisa que define independência nacional. Se um país abandona ou perde este poder, adquire o status de uma autoridade local ou colónia. Autoridades locais e regionais obviamente não podem desvalorizar. Mas elas também perdem o poder de financiar défices através da criação de moeda ao passo que outros métodos de obter financiamentos são sujeitos à regulação central. Nem tão pouco pode alterar taxas de juro. Como autoridades locais não possuem nenhum dos instrumentos de política macroeconómica, sua opção política está confinada a assuntos relativamente menores quanto à ênfase ? um bocado mais de educação aqui, um bocado menos de infraestrutura acolá. Penso que quando Jacques Delors coloca uma nova ênfase sobre o princípio da "subsidiaridade", ele está realmente a contar-nos que nos permitirão tomar decisões acerca de um grande número de assuntos relativamente menos importantes do que podíamos ter imaginado anteriormente. Talvez ele nos deixe ter pepinos enrolados afinal de contas. Grande coisa! (Godley 1992)
A chamada arquitectura "enviesada" da UME não se deveu a um "erro técnico". Como já argumentei, ela tem origem nas próprias premissas do pensamento económico fundamentalmente neoliberal que se apossou da mentalidade dos decisores políticos europeus na década de 1980 no seu esforço aparente por encontrar um meio de acabar com a "euro-esclerose" (Miller 1997) e promover os lucros corporativos europeus. A súbita mudança de uma economia social de mercado, a qual ganhou raízes na década de 1940 e prevaleceu até o princípio da de 1980, para uma economia de mercado laissez-faire foi demasiado flagrante para ser ignorada. No momento em que o Tratado de Maastricht foi assinado, círculos europeus de decisores políticas haviam-se tornado obcecados com a crença em que as variáveis críticas para o crescimento, fidedignidade e convergência eram encontráveis no comércio e na concorrência livres (artigo 102a), profunda integração financeira e nenhumas restrições a movimentos de capitais (artigo 73b).
O Tratado de Maastricht deveria ser entendido como a expressão política de uma inclinação socializada da elite europeia em favor da internacionalização do capital. Para além de toda a conversa cerca do "livre comércio" estava o desejo inequívoco de satisfazer as necessidades das multinacionais e indústrias oligopolistas europeias. [6] A década de 1980 foi de megafusões e aquisições e isto reflectiu-se na crescente excitação que um mercado comum produzia no mundo europeu dos negócios. Na década de 1990, houve uma nova e muito mais explosiva onda de fusões e aquisições na Europa cujo valor "era quase tão grande quanto os negociados nos Estados Unidos" (Gaughan 2007, 63). Finalmente, a mania da desregulamentação que irrompeu levou a um enorme processo de consolidação por parte do sector bancário.
Foi no contexto destes desenvolvimentos económicos que o Tratado de Maastricht foi moldado, assentando a fundação da estrutura altamente problemática da União Europeia que temos hoje. O movimento rumo à adopção de uma moeda única é consistente com a visão da criação de um mercado europeu unificado com um estado reduzido, com base na crença de que menos "interferência" do estado abre o caminho para operações de negócios mais eficientes e custos unitários do trabalho mais baixos. Não é uma crença que promova desenvolvimento sustentável ou sociedades que funcionem bem e decentes. Com a adopção de uma moeda única, o espaço para a tomada de decisão política nacional foi gravemente constrangido e, na ausência de um governo federal para atender questões de pleno emprego e convergência, a austeridade tornou-se, como que por padrão, uma componente integral da nova economia política europeia, proporcionando uma parceria perfeita para a flexibilidade do trabalho e outras medidas de reformas anti-sociais ? privatização, a mercantilização da saúde e da educação, pensões de reforma ? todas elas direccionadas para a completa mercantilização da sociedade.
O processo de uma plena integração capitalista europeia, tal como iniciada pelo AUE e formalizada pelo Tratado de Maastricht, não é um fenómeno novo em si mesmo. O crescimento da integração económica mundial teve um ímpeto tremendo desde meados do século XIX até o estalar da I Guerra Mundial (O'Rourke e Williamson 1999). Os processos de integração europeia também não são qualitativamente diferentes dos processos de integração regional que tiveram lugar em outras partes do mundo ? embora seja verdade que não temos estudos comparativos adequados envolvendo a UE e outras espécies de organizações regionais. Mas mesmo se a encararmos como uma entidade política (polity) ao invés de um regime regional ou mesmo internacional, a UE ainda não é única, uma vez que já temos para fins de comparação os casos federais ou semi-federais dos Estados Unidos, Canadá e Suíça. De facto, se há algo gritante acerca dos fundamentos da União Monetária Europeia é quão pouco imaginativos e puramente tecnocráticos eles são: simplesmente repousam no muito admirado modelo alemão de estabilidade monetária e financeira, o qual é destituído de quaisquer mecanismos de prevenção ou administração de crise (Borges 2012; Balcerowicz 2012). Sua concepção demonstrou-se ser mais do que defeituosa, pois a crise em curso na eurozona aponta claramente para problemas subjacentes de desequilíbrios na área euro bem como para fraquezas estruturais generalizadas no modelo de governação.
Ao invés de ser única, a UE é realmente uma excentricidade ? uma criação como o Frankenstein. E tal como o Dr. Frankenstein, a Alemanha recusa-se a aceitar a responsabilidade pela sua criação ao impedir a UE de seguir um caminho de desenvolvimento adequado que contribuísse para as necessidades e bem-estar de todo o corpo político, com ênfase especial sobre as partes mais fracas, tratando-as ao contrário como meios para satisfazer seus próprios desejos e ambições económicas. A concepção do BCE na base dos estatutos do Bundesbank, por exemplo, reflecte não só a mentalidade económica alemã como também aspirações da Alemanha pela dominação económica da eurozona. Na verdade, o Bundesbank não é a autoridade monetária mais conservadora do mundo por acidente: ela ajusta-se aos interesses económicos e corporativos da Alemanha.
A abordagem anti-crescimento e não democrático que está incorporada no Tratado de Maastricht e é reforçada por virtualmente todos os outros tratados ? desde os Tratados de Amsterdam (1997), Nice (2002) e Lisboa (2007) ? assegura desenvolvimento desigual e tomada de decisão autoritária no funcionamento do projecto de integração europeu. O Tratado de Lisboa, em particular, fortaleceu ainda mais a componente de "défice democrático" na estrutura da UE (embora seus apoiantes argumentem, perversamente, que este foi o tratado que realmente tratou do problema do "défice democrático"), com a maior parte das leis sendo agora feitas em Bruxelas sob o comando de uma Alemanha imperial.
Tanto a natureza conservadora e não democrática da UE como o papel imperial da Alemanha tornaram-se perfeitamente claros desde o irromper da crise da eurozona três anos atrás, quando a Grécia, com seu elevado défice orçamental e dívida pública inchada, foi excluída dos mercados internacionais de crédito procurou refúgio num acordo intermediado pela UE e o Fundo Monetário Internacional (FMI) de modo a não incumprir suas obrigações de dívida e provocar um efeito contágio por toda a área Euro. O manuseamento do problema de dívida da Grécia não foi baseado sobre qualquer princípio de solidariedade da parte da UE mas, ao invés, medido exclusivamente com base no seu impacto sobre bancos da Europa, os quais estavam altamente expostos à dívida grega. Os termos do salvamento (bailout) procuravam assegurar que os reembolsos de dívida continuassem pela sujeição da sociedade grega a medidas de austeridade implacáveis e ao mais violento programa de consolidação orçamental imposto a uma economia europeia desde a II Guerra Mundial. Em coerência com as premissas originais do Tratado de Maastrichet e a mentalidade anti-crescimento do projecto de integração europeu como um todo, não foi oferecido à Grécia um caminho viável de saída da sua crise mas, ao invés, transformada numa cobaia para a área Euro, com dois objectivos primários em mente: (1) intimidar os outros países mediterrâneos do Sul apregoando o destino que os esperava se falhassem em colocar na ordem seus orçamentos, e (2) transformar a Grécia num laboratório para uma transformação neoliberal radical.
Como documentámos alhures (Polychroniou 2012a, 2013a), a catástrofe económica e social que se abateu sobre a Grécia por conta dos programas de "resgate" dos "gémeos monstros" do neoliberalismo contemporâneo (isto é, a UE e o FMI) é de proporções sem precedentes para uma economia em condições de paz ? e está agora a transformar-se numa crise humanitária dentro da mais rica região económica do mundo. Mas isto não é o resultado acidental de uma política enviesada: é o resultado de uma política consciente da UE sob o comando de uma Alemanha imperial para a pilhagem dos países endividados do Mediterrâneo (Grécia, Portugal, Espanha, Chipre ? e Itália, se tiverem êxito) e sua transformação em colónias do centro imperial. O Euro tornou-se um garrote em torno do pescoço dos países periféricos, com a Alemanha a arrastá-los como escravos no caminho para o mercado.
A Alemanha adoptou em relação aos endividados estados-membros da eurozona a mesma política executada em relação à Alemanha do Leste após a unificação: a destruição da sua base industrial e a conversão do antigo país comunista num satélite de Berlim. Os resgates bancários mascaram-se como resgate de países e são seguidos pela imposição de medidas de austeridade insuportáveis para assegurar o reembolso dos empréstimos do "resgate". A seguir vem a implementação de políticas económicas estratégicas destinadas a reduzir o padrão de vida para a população trabalhadora e a contracção do estado de bem-estar social, a flexibilização total do trabalho e a venda de activos públicos, incluindo companhias de energia e portos controlados pelo estado. Isto constitui a estratégia alemã para pilhar as economias carregadas de dívidas da região mediterrânea.
Na Grécia, a estratégia para a pilhagem da economia interna levou mesmo à criação de uma agência especial de privatização (TAIPED) para a administração da venda de activos públicos. A única coisa que está a faltar é um sinal anunciando: GRÉCIA: UM PAÍS À VENDA . A decisão do Eurogrupo (tomada por insistência da Alemanha e com o apoio do FMI e de países do núcleo da eurozona) de mobilizar contas bancárias pessoais como parte de um acordo para "resgatar" Chipre destruiu um pilar chave da economia da ilha e estabeleceu um precedente para tratar futuras crises bancárias na eurozona. A busca da Alemanha de dominação financeira marcha em frente.
Como as coisas se posicionam, os "bailouts" representam a melhor solução possível para a Alemanha e seus bancos, assim como para as tesourarias dos países núcleo da eurozona, por várias razões. Primeiro, porque permitem que o jogo do Euro continue uma vez que há muitos interesses especiais em causa e a dissolução da eurozona pode ter consequências apocalípticas. Segundo, porque os empréstimos para o "resgate" estão muito bem segurados, graças à implementação de programas extremos de consolidação orçamental: eles são reembolsados prontamente pelos países endividados e com juros maciços. Ao mesmo tempo, a austeridade e as políticas de ajustamento orçamental impostas pelos prestamistas internacionais realmente aumentam ao invés de diminuir os rácios dívida-PIB dos países endividados pois eles contraem a actividade económica e portanto reduzem receitas do estado, mantendo-os com isso num círculo vicioso de dependência. Terceiro, porque o colapso das economias dos países endividados produz uma fuga de capital que acaba principalmente na Alemanha, a qual é vista cada vez mais como o lugar mais seguro para estacionar Euros enquanto a crise na eurozona se aprofunda. [7] A perda de fundos por bancos na Espanha, Itália, Grécia, Portugal e Irlanda é espantosamente alta, montando a centenas de milhares de milhões de euros (o que significa que estes países são devedores líquidos do BCE), ao passo que o Deutsche Bank e a maior parte dos outros bancos alemães estão inundados de dinheiro. Quarto, sob os esquemas de salvamento externo (bailout), os países endividados abdicam da soberania nacional e são forçados a vender activos públicos (principalmente aos invasores do Norte) a preços de liquidação, enquanto a redução nos custos do trabalho devido à contenção salarial abre novas oportunidades para a exploração agravada do trabalho e acelera o processo de conversão dos países em repúblicas das bananas. [8]
Não pode haver dúvida acerca disto: as políticas neocolonialistas seguidas pela Alemanha e a UE estão a converter a maior parte da Europa numa devastação económica (Polychroniou 2012b). Salários e pensões estão a ser severamente cortados; a procura interna foi drasticamente reduzida; o desemprego atingiu níveis estratosféricos (27 por cento na Grécia, 26 por cento na Espanha, 17 por cento em Portugal); o padrão de vida foi revertido aos níveis da década de 1960; serviços públicos estão a ser entregues ao sector privado; activos do Estado e empresas públicas estão a ser vendidos a preços vis.
Em todos os países endividados da eurozona, jovens educados estão a abandoná-los à procura de trabalho nos países do núcleo, privando portanto as economias periféricas do activo mais importante que possuem ? capital humano qualificado ? enquanto mais uma vez promove o potencial económico dos países do núcleo. [9] Logo, a região mediterrânea Sul consistirá em economias onde a maior parte dos postos de trabalho serão de empregados e empregadas de mesa.
Em suma, o que está a acontecer na periferia da eurozona desde que irrompeu a crise financeira global é um processo de pilhagem e perda completa de soberania nacional. Devido aos "bailouts", os países endividados têm sido sujeitos a um sistema contemporânea de servidão neo-feudal como parte de uma "solução" alemã para uma mal concebida união monetária europeia em paralelo com a busca de um eurozona Reich.
O que o futuro reserva para a eurozona é, naturalmente, impossível prever. O que é certo, entretanto, é que está aproximar-se rapidamente o momento em que a opinião pública na periferia se volta contra o Euro e a UE. Cenários alternativos para a saída da crise muito provavelmente ganharão terreno, [10] e é altamente improvável que contenham a marca da política actualmente vigente e da elite política interna dos países endividados. Na Grécia, Espanha, Portugal e Chipre as elites internas e os chamados tecnocratas acrescentaram por sua conta as medidas de austeridade e demonstraram serem verdadeiros servos da nova Roma. Portanto, a mudança só virá de baixo para cima e a única pergunta é se será numa direcção progressista ou reaccionária ? isto é, envolvendo o restabelecimento de uma "Europa social" ou mesmo a dissolução da eurozona e o retorno do estado-nação democrático, ou um afundamento no extremismo de direita e no nacional chauvinismo.
Notas
1. O projecto de integração europeu foi concebido como uma experimentação puramente económica, mas com esperanças e expectativas de que os "excedentes económicos" finalmente levariam também à integração política. Esta abordagem é consistente com a teoria neofuncionalista da integração, a qual foi formulada originalmente pelo cientista político germano-americano Ernst Haas (1958).
2. O mais recente responsável europeu a embarcar nesta linha de raciocínio é Jean-Claude Juncker, primeiro-ministro do Luxemburgo e, até recentemente, como chefe do Euro Grupo, o patrão das finanças da Europa. Em meados de Março, numa entrevista à revista alemã Der Spiegel (2013), ele exprimiu preocupação sobre desenvolvimentos políticos na Itália e Grécia e levantou o espectro de uma outra guerra na Europa.
3. Para uma discussão do papel dos negócios e dos grupos de interesse dos negócios no projecto de integração europeia, ver Franko (1989).
4. Ver, por exemplo, The Economist (2012).
5. Delors, como chefe da Comissão Europeia, desempenhou um papel chave nestes desenvolvimentos, mas foi naturalmente o consenso que emergiu entre o presidente francês François Mitterrand, um forte advogado do projecto da integração europeia que abandonou objectivos históricos do socialismo em favor do neoliberalismo, e Helmut Kohl, chanceler de uma Alemanha unificada, que tornou possível o acordo.
6. A European Round Table of Industrialists, fundada em 1983, foi instrumental em influenciar líderes europeus a embarcarem num caminho neoliberal. Ver Apeldoorn (2002).
7. A destruição líquida de riqueza na eurozona é realmente um processo em curso devido às distorções da utilização do euro como uma moeda única numa zona monetária não óptima: para a Alemanha, o Euro está subvalorizado, o que lhe permite ter uma vantagem comparativa no preço das exportações; para todos os países na periferia, entretanto, o Euro está supervalorizado, o que prejudica suas indústrias exportadoras, tornando-as na generalidade altamente não competitivas.
8. Esta secção da análise apareceu originalmente em Polychroniou (2013b).
9. Na Grécia, milhares de jovens emigrara, principalmente para a Alemanha e os outros países do Norte. Indicativo da tendência esmagadora à emigração que está a ocorrer na Grécia, a percentagem de jovens que submetêm CVs para emprego no exterior aumentou em mais de 450 por cento entre 2009 ? o ano anterior ao princípio da crise ? e 2012. Um fuga de cérebros ("brain drain") verificou-se em Portugal, onde mais de 100 mil portugueses, principalmente jovens, emigraram em 2012, um aumento de aproximadamente 60 por cento em relação a 2011 (Peláez 2013). Na Irlanda, nesse ínterim, a emigração atingiu níveis nunca vistos desde a Grande Fome dos meados do século XIX (Sheehan 2012).
10. Numa entrevista recente ao diário grego Ethnos, Dimitri B. Papadimitriou (2013) propôs a criação de um sistema de moeda paralela como um componente potencialmente necessário de qualquer plano alternativo para a saída da Grécia e de Chipre da crise.
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resistir.info/europa/eurozone_crisis_17abr12.html , 17/Abr/12
resistir.info/grecia/polychroniou_24mai12.html , 04/Jun/12
[*] Investigador associado do Levy Economics Institute of Bard College.
O original encontra-se em www.levyinstitute.org/pubs/pn_13_5.pdf
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://www.resistir.info/crise/geab_78.html
? A emergência de soluções para um mundo multipolar daqui até 2015
por GEAB [*]
Há momentos em que a história se acelera. Seja qual for o desfecho das negociações sobre o shutdown e o tecto da dívida, Outubro de 2013 é um deles. O bloqueio levado demasiado longe abriu os olhos daqueles que ainda apoiavam os Estados Unidos. Um líder é seguido quando nele se acredita, não quando é ridículo.
"Construir um mundo desamericanizado": há alguns anos, a afirmação teria provocado um sorriso. No máximo, teria passado por uma provocação de Hugo Chavez. Mas quando se assiste em directo à falência dos Estados Unidos, e é uma agência de notícias oficial da China que o diz [1] , o impacto já não é o mesmo. Na realidade a notícia descreve em voz alta um processo já amplamente iniciado: simplesmente, agora é tolerado que se fale disso publicamente. O bloqueio do governo americano pelo menos teve o mérito de desatar as línguas [2] . Que ninguém se engane, esta análise não apareceu num media chinês por acaso, ela reflecte o endurecimento de tom de Pequim.
Com efeito, se o mundo inteiro retém a respiração diante do jogo patético das elites estado-unidenses, não é por compaixão ? é para evitar ser arrastado na queda primeira potência mundial. Cada um tenta desligar-se do império americano e afastar-se dos Estados Unidos, desacreditados definitivamente pelos recentes episódios sobre a Síria, o tapering, o shutdown e agora o tecto da dívida. O poder lendário dos Estados Unidos agora é apenas um poder de perturbação e o mundo compreendeu que já era tempo de se desamericanizar.
Esta perspectiva e a verbalização do indizível [3] libertam finalmente todo um conjunto de soluções que até então estavam nos primórdios e ainda eram até mesmo repelidas por alguns. Estas soluções aceleram a construção do mundo posterior e abrem-se sobre um mundo multipolar organizado em tornos dos grandes blocos regionais. Após um exame dos infortúnios americanos, nossa equipa analisa neste número do GEAB as forças que moldam este mundo em mutação. Na parte "Telescópio" retornaremos igualmente ao estado real da sociedade estado-unidense que, por trás da miragem da bolsa e da finança, explica o fracasso do american way of life e participa neste distanciamento em relação ao modelo americano. Finalmente, actualizamos nossa avaliação anual dos riscos-país a fim de completar este panorama mundial, assim como apresentamos as recomendações tradicionais e o GlobalEuromeÌtre.
Plano do artigo completo:
1. "No we can't"
2. Crises em rajada
3. Shutdown: a risada do mundo, mas com um riso amarelo
4. Desamericanisação em todos os níveis
5. O petrodólar está morto, viva o petroyuan
6. A China toma a Eurolândia pela mão
7. Rússia, America do Sul: sequência da desocidentalisação
Apresentamos neste comunicado público as partes 1, 2 e 4.
"No we can't"
Como os tempos mudam. O mundo inteiro esqueceu as palavras freedom, hope ou o famoso slogan "Yes we can", representativos da sociedade americana aos olhos de gerações anteriores, e passou agora a falar de taper, shutdown e tecto [da dívida]. Não se trata exactamente da mesma dinâmica e a imagem, de positiva, tornou-se francamente negativa.
É impressionante constatar a que ponto a actual situação americana confirma o provérbio de que uma infelicidade nunca vem só. Num período de mês e meio, primeiro uma humilhação sobre o dossier sírio por parte da própria Rússia. Depois um banco central que confessa a impossibilidade de diminuir a quantitative easing [4] . A incapacidade de votar um orçamento, o que implica o encerramento do Estado federal. Um shutdown que se prolonga bem para além do razoável [5] . Uma negociação sobre o tecto da dívida em impasse a dois dias da data limite. Os Estados Unidos pressionados pelo G20 a ratificar a reforma do FMI que eles bloqueiam desde há três anos, e pelo Banco Mundial e o FMI a porem na ordem suas finanças [6] . E agora o tiro de aviso chinês.
Crises em rajada
Esta sucessão de crises é absolutamente inquietante para o país e testemunha uma aceleração sem precedentes e um choque iminente. Há fatalidade nestas crises. Mas há também uma dose de recuperação estratégica. O shutdown pôde assim ser instrumentalizado por Obama para fazer pressão sobre os republicanos a fim de que eles votem a elevação do tecto da dívida, compromisso bem mais importante para os Estados Unidos. Isto não é visivelmente senão um êxito parcial, mas pode-se na mesma esperar uma elevação provisória, que adia todos os problemas por algumas semanas [7] ; entretanto não é de excluir que a via trágica seja escolhida, pois não se trata mais de uma decisão racional e que poderia ser antecipada.
Com efeito, se os comentaristas se concentram no Tea Party o qual, do mesmo modo como accionistas minoritários chegam a controlar uma sociedade através de uma holding, conseguiu sequestrar o Partido Republicano e a sociedade americana, uma outra leitura também pode ser efectuada. Agora numerosos americanos vêm a realidade de frente: seu país está na falência. Portanto, será melhor retardar a confrontação com a realidade, deixando que se ampliem os problemas, ou mais vale resolvê-los agora? Uma grande parte da população não vê com maus olhos um incumprimento de pagamento [8] . Além disso, que outro solução há, a prazo? Não haverá vontade dos republicanos em precipitar a crise? Esta é a ocasião sonhada uma vez que eles sempre podem culpar o Tea Party que declara sem rodeios que "nenhum acordo vale mais do que um mau acordo" [9] . O que queremos dizer é que desta vez, ou provavelmente numa outra ocasião num futuro próximo, eles poderiam ser tentados a cortar o nó górdio.
Da mesma forma, uma recuperação estratégica certamente teve lugar quando o Fed fez marcha-atrás quanto à redução da sua facilidade quantitativa. Por que terá ele dado a entender até o fim que diminuiria a QE3, sem o fazer no final? É a primeira vez que o Fed provoca uma surpresa nos investidores, todos 100% convencidos da diminuição gradual, pois havia feito da forward guidance um princípio bem estabelecido. Não haverá realmente nenhuma ligação com os grosseiros delitos de iniciados verificados no momento do anúncio do Fed [10] , que proporcionaram milhares de milhões aos seus autores? Tudo isso apoia a nossa hipótese de estabelecimentos financeiros americanos em estado de desespero que devem ser postos a flutuar discretamente por operações deste género, deixando em má situação a credibilidade do Fed. Mais uma vez soluções de curto prazo que pioram a situação mas adiam um pouco o desenlace fatal. Acerca destes bancos americanos, não somos mais os únicos a puxar a campainha de alarme: o Banco da Inglaterra aguarda falências de grandes bancos que teriam, segundo ele, perdido o estatuto de "too big to fail" [11] . Reiteramos portanto nossa advertência a respeito.
Tal como um boxeur, todos estes golpes encaixados tornaram o país grogue e não é preciso senão um último para o derrubar no chão. Se ele não vier de um incumprimento de pagamento americano em Outubro, isto acontecerá com algum outro compromisso que tiver sido adiado mas que, desta vez, não cederá.
Shutdown: a risada do mundo, mas com um riso amarelo
Quando escrevíamos no GEAB nº 77 a respeito da votação do orçamento: "não há dúvida que um compromisso será encontrado no último minuto ou, mais provavelmente, algumas horas ou mesmo alguns dias após a data limite", é forçoso constatar que ainda subestimávamos as divergências políticas em Washington uma vez que o "alguns dias" que tínhamos em mente transformaram-se em semanas. O diário Le Monde tinha como título do seu sítio web "o lamentável espectáculo de Washington" [12] . Mas finalmente este shutdown não tem um impacto desmedido sobre os mercados financeiros [13] , portanto tudo vai bem, parecem pensar numerosos republicanos que se acomodam muito bem a uma paralisia do Estado Federal e à redução das despesas públicas que se seguem.
Esta não é a opinião dos países que possuem um montante elevado de títulos do tesouro dos EUA, que se sentem lesados [14] pelos Estados Unidos. Eles estão estupefactos pela insustentável ligeireza dos EUA e pela atitude irresponsável daquele que ainda recentemente era "o patrão". Se o país entra em incumprimento em relação à sua dívida, a onda de choque será certamente terrível. Entretanto, isto não seria o fim do mundo uma vez que um eventual incumprimento poderia simplesmente assumir a forma de um atraso de pagamento de alguns dias; além disso, as diferentes regiões do mundo seriam afectadas muito desigualmente conforme o seu grau de desligamento da economia estado-unidense. Não, o país que mais sofrerá com esta solução (e qualquer outra, igualmente) será certamente os próprios Estados Unidos. Para registo: recordamos que eles detêm dois terços da sua própria dívida pública.
Eis porque os países melhor governados já começaram este grande desligamento, à cabeça dos quais está a China que sabe, desde Sun Tzu, que "quando o trovão explode já é demasiado tarde para tapar os ouvidos". [15]
Notas:
(1) Fontes: Xinhuanet (agence Chine Nouvelle, 13/10/2013), RFI (13/10/2013).
(2) Mesmo o Financial Times corrobora (02/10/2013): "o sistema actual baseado no dólar é intrinsecamente instável". Confissão incrível da parte de um jornal financeiro anglo-saxónico.
(3) A repercussão mundial recebida pelo artigo chinês mencionado acima mostra o interesse atribuído a esta declaração da segunda potência mundial e confirma que ela rompeu um tabu que vai permitir por em acção soluções longamente esperadas pela maioria dos países. Ler por exemplo a excelente análise do Asia Times , 15/10/2013.
(4) Fonte: Bloomberg , 18/09/2013.
(5) Fonte: CNN , 14/10/2013.
(6) Fonte: por exemplo PressAfrik , 12/10/2013.
(7) Fonte: New York Times , 15/10/2013.
(8) 58% dos americanos votariam contra a elevação do tecto da dívida. Fonte: Fox News , 08/10/2013.
(9) Fonte: Le Monde , 15/10/2013.
(10) Fonte: USA Today , 24/09/2013.
(11) Fonte: The Telegraph , 12/10/2013.
(12) Fonte: Le Monde , 14/10/2013.
(13) Evidentemente, uma vez que o Fed prossegue sua quantitative easing desenfreada.
(14) São ainda assim refens consentidos uma vez que financiaram maciçamente e voluntariamente este país...
(15) Sun Tzu, A arte da guerra , século VI AC.
15/Outubro/2013
[*] Global Europe Anticipation Bulletin.
O original encontra-se em www.leap2020.eu/...
Este comunicado público encontra-se em http://resistir.info/ .
http://www.resistir.info/europa/maldicao_do_euro.html
por David Cronin [*]
Tive um professor odioso na escola primária. Aquele bruto gostava de sovar seus alunos com duas varas castanhas que havia baptizado como Katie e Maggie. Quando não estava a infligir sofrimento às nossas palmas das mãos, o sr. C dava-nos lições de moral acerca do erro da violência.
José Manuel Barroso recorda-me o sr. C ? ainda que não haja semelhança física um com o outro. O chefe da Comissão Europeia está a supervisionar um experimento sádico que castiga milhões de pessoas, as quais não foram responsáveis pela crise financeira. E agora ele pretende ter descoberto uma consciência social.
Barroso e seus colegas começaram este mês um exercício cínico de recobri de açúcar a austeridade. Um documento de nova política da Comissão advoga que deveria haver mais acompanhamento das políticas de emprego dentro dos países da zona Euro. Isto está a ser apresentado como um grande esforço a fim de dar à moeda única uma dimensão social .
Não espere que o sadismo seja abandonado. Hoje todos os governos da eurozona estão sob tutela e têm de submeter seus orçamentos nacionais ao escrutínio de Bruxelas até 15 de Outubro. As regras de despesas que estão a levar ao estripamento de muitos estados de bem-estar social estão a ser impostas com rigor.
Dar uma "dimensão social" ao euro ignora que este é um projecto fundamentalmente anti-social. Não peço desculpas por procurar repetidamente chamar a atenção para o facto de que o plano de 1988 para a criação desta moeda foi formulado por um conluio de grandes corporações com mandato democrático zero. A Association for the Monetary Union of Europe , como aquele conluio era conhecido, incluía representantes da Goldman Sachs, Deutsche Bank, Total e British American Tobacco. Sua agenda era realizar as fantasias dos gatos gordos, e não, como nos dizem assessores de imagem, unir mais estreitamente os povos da Europa.
Um quarto de século depois, um conluio semelhante está a ditar as políticas económicas da UE. Em Junho, os governos da União comprometeram-se a proporcionar a todos os jovens um emprego ou estágio de aprendizagem dentro de quatro meses após o fim da faculdade ou de ficarem desempregados. Elementos chave desta proposta de garantia jovem foram copiados e colados de recomendações feitas pela Mesa Redonda Europeia de Industriais (European Roundtable of Industrialists, ERT), a qual reúne presidentes e executivos chefe da Shell, BP, Volvo, Nestlé e Heineken.
Longe de ser altruísta para com os nossos jovens, a ERT quer proporcionar-lhes um futuro de tensão, incerteza e empregos de pacotilha. Uma ladainha de exigências do grupo declara que as "medidas de protecção do emprego devem ser redesenhadas e modernizadas" na maior partes dos países da UE.
A ideia deles de "modernização" significa recuar a uma era anterior em que o trabalho organizado não havia alcançado avanços significativos. Se a ERT conseguir avançar, grandes companhias poderão dar pré avisos mais curtos antes de despedirem trabalhadores e pagarem indemnizações aos que perdem empregos quando estes forem cortados drasticamente. Pagamentos por horas extras e feriados não utilizados podem ser abolidos em nome da "flexibilidade".
Aqui em Bruxelas, Jacques Delors muitas vezes é louvado como uma espécie de visionário. Se o seu objectivo fosse ampliar a desigualdade e fazer milhões de miseráveis, então imagino que fosse um visionário. Pois foi exactamente isso o que este francês conseguiu ao apoiar veementemente o projecto da moeda única quando era presidente da Comissão Europeia.
Hoje Delors dirige um think tank chamado Notre Europe que é parcialmente financiado pelo gigante da energia GDF Suez. Seus devotos continuam a dar a impressão de que vale a pena salvar o Euro, desde que a sua fachada seja um pouco lavada.
Um novo documento do Notre Europe argumenta que a regra de despesas subjacente ao Euro deveria permanecer baseada no princípio de que aqueles que a desobedeçam serão punidos. Qualquer "dimensão social" que seja introduzida, por outro lado, deveria confiar em incentivos, ao invés de sanções.
Isso resume tudo, realmente. Governos ainda podem ser intimidados e coagidos a retalhar despesas em saúde e educação. Mas quaisquer medidas para amortecer a bofetada serão consideradas opcionais.
Seria encorajante se os sindicatos estivessem a combater esta agenda anti-social. Se bem que numerosos activistas estejam nas linhas de frente da resistência, alguns grandes actores no movimento trabalhista estão demasiado ocupados a aconchegaram-se aos patrões.
A Confederação Europeia dos Sindicatos associou-se recentemente à coligação corporativa BusinessEurope para emitir uma proposta conjunta para travar o desemprego juvenil. Com sua ênfase sobre "reformas" e "competitividade" ? ambas sinónimos de enfraquecimento de direitos trabalhistas ? a proposta lê-se como uma versão diluída da já mencionada ladainha da ERT.
O Euro tem sido uma maldição para as pessoas comuns. É necessário enterrá-lo se pretendemos uma Europa mais justa.
01/Outubro/2013
[*] Jornalista, irlandês, vive em Bruxelas, autor de Corporate Europe: How Big Business Sets Policies on Food, Climate and War , publicado pela Pluto Press.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
"Mas um grande país [a Alemanha] com um enorme excedente estrutural de transacções corrente não exporta apenas produtos. Exporta também bancarrota e desemprego, particularmente se o fluxo de capital correspondente consiste em dívida a curto prazo". Quem o diz é Martin Wolf, colunista do Financial Times, a propósito da política económica do sr. Schäuble, ministro das Finanças alemão. Ver o seu artigo "O estranho universo paralelo da Alemanha ? Plano de Merkel para a zona Euro é profundamente depressivo" .
Com tal política a sobrevivência da zona Euro é impossível. Donde se conclui que, para os países do Sul da Europa, o melhor caminho para evitar serem arrastados no naufrágio do Euro (e da UE) é a saída unilateral. Quanto mais cedo melhor.
por Jacques Sapir [*]
http://www.resistir.info/europa/sapir_16set13.html
Desde o fim da Primavera, chega-nos dos países do Sul da Europa um concerto de "boas notícias". O crescimento estaria a retornar em Portugal, na Espanha e até mesmo na Grécia. As taxas mantêm-se a um nível considerado como "razoável". Em resumo, a crise da zona Euro estaria nas nossas costas. Contudo, ao olhar melhor, pode-se seriamente duvidar da realidade destas afirmações.
Será que saímos da Crise?
Há muito de manipulação, mas um pouco de verdade, nestas afirmações. Comecemos pelo pouco de verdade que contêm. Sim, a crise está em vias de atingir um patamar. Isto é evidente em Espanha onde o desemprego parece doravante estabilizado, ainda que a um nível muito elevado (25% da população activa). A crise não parece agravar-se mais nestes últimos meses, mas isso está longe de ser equivalente a uma saída da crise. Acrescentemos que nuvens cada vez mais negras se acumulam no horizonte: o crédito está em vias de se contrair (em particular na Itália e em França), o investimento reduz-se sempre (e com ele as perspectivas de crescimento futuro). Nada permite dizer que os países do Sul da Europa irão encontrar nos próximos meses o impulso de um crescimento que lhes permita apagar a crise que experimentam. A perspectiva de uma nova crise política na Itália, vindo acrescentar-se às dificuldades económicas, é uma forte probabilidade. [1]
Pode-se igualmente constatar (gráfico 1) que a melhoria da balança comercial neste país [Itália] está ligada à queda das importações e não a uma alta das exportações.
Da mesma forma, a subida dos créditos não pagos no balanço dos bancos é um indicador muito seguro da acumulação de problemas (gráfico 2).
Tendo em conta a importância da economia italiana, que é a terceira economia da zona Euro, é claro que a zona Euro está longe, muito longe, de estar livre de problemas.
No melhor dos casos, a crise vai durar ao mesmo nível que hoje. No pior ? e é isto que se pode temer quando se olha a evolução do crédito e do investimento ?, após esta pausa provisória, os resultados deveriam recomeçar a degradar-se a partir do segundo semestre de 2014. Já está claro que será preciso um novo plano de salvamento para a Grécia daqui até ao fim de 2013. [2]
Isto nos conduz às manipulações, amplamente evidentes num certo número de medias. Não se fala mais senão da "retomada" enquanto o conjunto dos indicadores permanece muito inquietante. Há um consenso numa parte da imprensa, essencialmente por razões políticas, que a leva a proclamar este retorno ao crescimento quando tudo o desmente. Houve um exemplo destas práticas a propósito das estatísticas do desemprego em França. Isso é instrutivo, tanto quanto ao estado de certos media em França quanto do ponto de vista mais geral da atitude das elites sobre este problema. Enquanto se continua a discutir a crise do Euro na Alemanha, na Itália e em Espanha, o tema parece ter desaparecido em França.
A crise em perspectiva
A zona Euro tem sofrido de vários males: a ausência de fluxos financeiros maciços para equalizar as estruturas económicas dos países membros; um Banco Central independente fixado numa política inoperante [3] ; e uma política de deflação salarial iniciada pela Alemanha, que tem a aparência de uma política de "passageiro clandestino" [4] ? também qualificada de "oportunista" ou de "não cooperativa" ? que exacerbou as tendências pré existentes às evoluções desiguais dos salários e da produtividade.
É preciso aqui lembrar que a crise da zona Euro não data dos anos 2010-2011, mas que tem raízes bem mais antigas. A introdução do Euro implicava também uma política monetária única para os países da zona. Ora, tanto as conjunturas económicas como os determinantes estruturais da inflação ? os problemas de repartição dos rendimentos, mas também a presença de cadeias logísticas mais ou menos sensíveis a altas de preços susceptíveis de serem adiadas ? implicam taxas de inflação estrutural diferentes conforme os países. Esta situação resulta da presença de rigidezes importantes na economia que invalidam a tese de uma "neutralidade" da moeda. [5]
Entretanto, no quadro de uma moeda única, as divergências de inflação não podem ser demasiado importantes devido a problemas de competitividade interna na zona. Um certo número de países teve então de ter uma inflação inferior ao seu nível estrutural. Isso, em consequência, levou-os a ter uma taxa de crescimento inferior à sua taxa de crescimento óptima e explica porque certos países como a Itália ou Portugal experimentaram um crescimento muito fraco. De facto, estes países perderam em dois tabuleiros: na competitividade e no nível de crescimento. [6]
Tabela 1? Taxas de crescimento dos países da zona Euro comparadas com países externos à zona (%)
1986/2012
1986/1999
2000/2007
Canadá 2,48 2,75 2,84
França 1,81 2,30 2,06
Alemanha 1,86 2,36 1,67
Itália 1,24 2,00 1,56
Japão 1,70 2,44 1,52
Grã-Bretanha 2,45 3,07 3,16
EUA 2,59 3,30 2,59
Suécia 2,31 2,21 3,23
Fonte: FMI, Outlook Database, Abril 2013
Se a economia europeia se arrasta na recessão desde 2000, isto verifica-se exactamente por causa do Euro. O facto de a Alemanha ter tirado proveito confirma isso, tanto devido às vantagens comparativas específicas deste país como à política que foi efectuada desde 2002 (as "reformas" Harz-IV). O Euro está no cerne do problema da Europa. Ele condena a maioria dos países que o adoptaram à recessão ou à crise, como na Europa do Sul. A Alemanha "exportou" para estes países entre 4 e 5 milhões de desempregados.
A opção de um federalismo europeu [7] , outro dos problemas políticos que ela introduz, choca-se com a amplitude dos fluxos de transferências a que a Alemanha deveria consentir em benefício dos países da Europa do Sul [8] . A Alemanha suportaria efectivamente 90% do total destas transferências líquidas, ou seja, entre 220 e 232 mil milhões de euros por ano (o que equivale 2200 a 2320 mil milhões em dez anos), entre 8% e 9% do seu PIB. Outras estimativas dão níveis ainda mais elevados, atingindo 12,7% do PIB. [9] . Convém portanto extrair todas as consequências: o federalismo não parece uma opção realista para os países da Europa do Norte e em primeiro lugar para a Alemanha. É irrelevante apresentá-lo como uma possível solução. [10]
A dissolução, único horizonte razoável?
A amplitude da recessão que atinge numerosos países anuncia um retorno da crise. A solvabilidade dos Estados não está mais garantida. O colapso dos recursos fiscais em numerosos países constitui um acelerador da crise. Esta situação testemunha perfeitamente a presença de defeitos estruturais na concepção e na execução da moeda única. [11] Estes últimos, desde há muito negados ou minimizados [12] , estão hoje em vias de serem reconhecidos.
SOLUÇÃO SALVADORA PARA A EUROPA DO SUL
Uma dissolução da zona Euro não seria uma "catástrofe" como muitas vezes se pretende, mas pelo contrário uma solução salvadora para a Europa do Sul e a França. É isto que mostra o estudo "Les Scénarii de Dissolution de l'Euro", publicado no princípio de Setembro. [13] Ali se pode ler, seguindo as diferentes hipóteses estudadas, não só o efeito muito benéfico das desvalorizações sobre a economia francesa como também sobre aqueles países hoje devastados pela crise, como a Grécia, Portugal ou Espanha. Naturalmente, segundo as hipóteses retidas, quanto ao carácter mais ou menos cooperativo desta dissolução mas também quanto à política económica seguida, as estimativas do crescimento divergem. Na pior, será preciso esperar um crescimento acumulado de 8% no terceiro ano após o fim do Euro e na melhor um crescimento de 20%. Para a Europa do Sul, o crescimento acumulado é em média de 6% para a Espanha, de 11% para Portugal e de 15% para a Grécia na hipótese mais desfavorável para estes países. Uma primeira lição se impõe então: a dissolução da zona Euro restauraria o crescimento em TODOS os países da Europa do Sul e provocaria uma baixa maciça e rápida do desemprego. Para a França, pode-se estimar a baixa do número de desempregados entre 1,0 e 2,5 milhões em três anos. Além disso, restabelecer-se-ia o equilíbrio dos regimes de reformas e de protecção social. No caso da França, este retorno ao equilíbrio seria muito rápido (em dois anos). Haveria efeitos importantes sobre as antecipações das famílias cujo horizonte seria libertado das inquietações provocadas por reforma em repetição. O consumo aumentaria e com ele o crescimento, mesmo que não se possa estimar este efeito. Esta dissolução daria outra vez à Europa do Sul sua vitalidade económica, mas seria lucrativa também para a Alemanha, pois uma Europa do Sul em expansão continuaria a comerciar com o seu vizinho do Norte após um reajustamento das competitividades. [14]
Os inconvenientes seriam muito limitados. Tendo em conta os impostos, o impacto de uma desvalorização de 25% em relação ao Dólar sobre o preço dos combustíveis não provocaria senão uma alta de 6% a 8% do produto "na bomba". Desaparecido o Euro, as dívidas dos diferentes Estados seriam redenominadas em moeda nacional.
Uma tal política imporia também controles de capitais em cada país. Notemos que este já é o caso em Chipre! Estes controles, além do facto de que contribuiriam para desfinanciarizar estas economias, limitariam consideravelmente a especulação e permitiriam aos Bancos Centrais visar objectivos de paridade. Uma vez atingidas estas paridades, um sistema de flutuações coordenadas das moedas, como no tempo do ECU, poderia ser posto em acção. Historicamente, o que desferiu o golpe mortal neste sistema foi a especulação monetária. Suprimida esta, ou fortemente reduzida, o sistema poderia funcionar novamente.
Da "moeda única" à "moeda comum"?
Esta ideia atrai um certo número de homens (e de mulheres) políticos. E ela está longe de ser absurda, muito pelo contrário. De facto, uma moeda comum deveria ter sido adoptada desde o princípio.
Do que se trata? Pode-se imaginar que o sistema monetário europeu reconstituído que se teria após a dissolução do Euro desemboque numa "moeda comum" vindo acrescentar-se às moedas existentes, a qual seria utilizada para o conjunto das transacções (bens e serviços mas também investimentos) com os outros países.
Esta dissolução da zona Euro, se ela resultar de um acto concertado da parte dos países membros, deveria dar nascimento a um sistema monetário europeu (SME) encarregado de garantir que a necessária flexibilidade dos câmbios não se transforme em caos. Se um tal sistema for posto em acção, haveria necessariamente consequências importantes sobre o sistema monetário internacional. Este novo SME deveria, para poder funcionar correctamente, ter as seguintes características:
(i) As paridades entre as moedas dos países que fazem parte deste SME devem ser fixas, ainda que permanecendo revisáveis de maneira regular para evitar que se reproduzam os desequilíbrios que hoje devastam o Euro. Isto implica a constituição de uma unidade de conta europeia e a regulamentação dos movimentos de capitais no interior da zona. Se os movimentos de capitais para fins de investimento não colocam problemas devido à fixação das paridades, não deve haver senão um mercado muito reduzido das opções, ele próprio severamente regulamentado. De resto, o mercado monetário não deve ser feito senão à vista (au comptant) com interdição absoluta das posições descobertas.
(ii) A fixação das paridades deve-se fazer de maneira coordenada , no quadro de um conselho financeiro europeu, tendo em conta as evoluções da produtividade e da inflação em cada país. O objectivo sendo reduzir fortemente as posições seja credoras seja devedoras em matéria de balança de pagamentos. Os défices como os excedentes internos no SME deveriam então ser transferidos para uma conta especial do BCE ? que desempenharia assim o papel de instituição de clearing ? e deveriam ser tributados proporcionalmente (prorata) à sua importância (por tranche) e a sua duração.
(iii) É importante que a legislação bancária, em particular para os bancos de retalho, seja harmonizada. Deste ponto de vista, um mecanismo de união bancária é tão importante quanto o era sob o Euro. Esta união bancária deveria ser administrada pelo BCE, cujas competências e papel seriam então redefinidos por um novo estatuto.
(iv) O Banco Central Europeu terá a responsabilidade da gestão da unidade de conta em relação a países "fora da zona". Isso implica que ele teria a responsabilidade de ter um objectivo de taxa de câmbio da unidade de conta em relação às outras moedas (fora do SME) e que deveria poder intervir para defender este objectivo nos mercados financeiros. As transacções tanto comerciais como financeiras fora do SME seriam feitas só em unidade de conta.
(v) Neste sistema monetário europeu, não é necessário nem desejável que o estatuto actual dos Bancos Centrais seja conservado. Convém aproximar os Bancos Centrais dos governos ? passando de uma "independência" a uma "autonomia" na aplicação das políticas decididas pelos governos ? e permitir-lhes cobrir por empréstimos e adiantamentos mínimos a parte não estrutural do défice (peso dos juros da dívida, medidas orçamentais especiais para enfrentar crises ou qualquer outro imprevisto).
(vi) A dívida dos países, no momento detida de 30% a 65% por não residentes (maioritariamente europeus) seria progressivamente renacionalizada. As emissões de dívidas não poderiam ser feitas senão na moeda nacional, salvo acordo europeu para manter uma moeda comum externa, que deveria oferecer activos de aplicações internacionais e que justificaria que uma parte mínima das dívidas seja denominada nesta moeda comum. De facto, a utilização de mecanismos como os patamares mínimos de efeitos públicos nos activos dos bancos forneceria os recursos necessários.
(vii) A unidade de conta funcionaria como um "cabaz" de moedas, onde as proporções de cada moeda, assim como suas paridades, poderiam ser revistas.
Este sistema corresponderia na realidade à existência de uma moeda concebida como uma unidade de conta vindo acrescentar-se às moedas nacionais existentes. Esta situação seria muito propícia à ressurreição do Euro, mas sob a forma de uma moeda comum.
Isto daria à Europa em simultâneo a flexibilidade interna de que tem necessidade e a estabilidade em relação ao resto do mundo. Sendo um "cabaz de moeda" intrinsecamente mais estável que uma moeda isolada, esta moeda comum poderia a prazo tornar-se um poderoso instrumento de reserva, correspondendo aos desejos expressos pelos países emergentes dos BRICS.
A dissolução do Euro, nestas condições, assinalaria não o fim da Europa como pretendem alguns mas sim, ao contrário, seu retorno vencedor na economia mundial. E, além do mais, um retorno que beneficiaria maciçamente, tanto pelo crescimento como pela emergência a prazo de um instrumento de reserva, os países em desenvolvimento da Ásia e da África.
Notas
[1] Thelier C., "Italie, une rentrée agitée", NATIXIS Special Report , n° 155, 13 septembre, Paris.
[2] Artus P., "En quoi pourrait consister une nouvelle aide à la Grèce?" FLASH-ECONOMIE Natixis , n° 598, 30 août 2013, Paris.
[3] Biböw J., "The Euro and Its Guardian of Stability" in Rochone L-P et S. Yinka Olawoye (edits), Monetary Policy and Central Banking : New Directions in Post-Keynesian Theory , Edwrd Elgar, Cheltenham et Northampton, 2012, pp. 190-226.
[4] Flassbeck H., "Wage Divergence in Euroland : Explosive in the Making" in Biböw J. et A. Terzi (edits.), Euroland and the World Economy ? Global Player or Global Drag ? , Palgrave MacMillan, Londres, 2007.
[5] B.C. Greenwald et J.E. Stiglitz, "Toward a Theory of Rigidities" in American Economic Review , vol. 79, n°2, 1989, Papers and Proceedings , pp. 364-369. L. Ball et D. Romer, "Real Rigidities and the Nonneutrality of Money" in Review of Economic Studies , 1990, vol. 57, n°1, pp. 183-203.
[6] Voir sur ce point Biböw J. et A. Terzi (edits.), Euroland and the World Economy ? Global Player or Global Drag ? , op.cit..
[7] Artus J., Trois possibilités seulement pour la zone euro , NATIXIS, Flash-Économie , n°729, 25 octobre 2012.
[8] Sapir J., "Le coût du fédéralisme dans la zone Euro", billet publié sur le carnet Russeurope le 10/11/2012, URL: http://russeurope.hypotheses.org/453
[9] Artus P., "La solidarité avec les autres pays de la zone euro est-elle incompatible avec la stratégie fondamentale de l'Allemagne : rester compétitive au niveau mondial ? La réponse est oui", NATIXIS, Flash-Économie , n°508, 17 juillet 2012.
[10] Comme le fait Michel Aglietta, Zone Euro : éclatement ou fédération , Michalon, Paris, 2012
[11] Sapir J., Faut-il Sortir de l'Euro ? Le Seuil, Paris, 2012.
[12] Des travaux comme ceux collationnés dans Biböw J. et A. Terzi (edits.), Euroland and the World Economy ? Global Player or Global Drag ? , Palgrave MacMillan, Londres, 2007.
[13] Sapir J., et P. Murer (avec la contribution de C. Durand), Les scenarii de la dissolution de l'Euro , Étude de la Fondation Res Publica , septembre 2013, Paris, 88p.
[14] Artus P. (red), "C'est la compétitivité-coût qui devient la variable essentielle" in Flash-Economie , Natixis, note n° 596, 30 août 2013, Paris.
16/Setembro/2013
[*] Economista.
O original encontra-se em russeurope.hypotheses.org/1526
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://agal-gz.org/blogues/admin.php?ctrl=items&action=new&blog=12
"O sistema monetário pós Bretton Woods pode ser caracterizado não como um padrão dólar, mas mais rigorosamente como um padrão petro-dólar".
por Prabhat Patnaik [*]
Introdução
Um aspecto intrigante da nossa vida quotidiana é que uns pequenos pedaços de papel que intrinsecamente não valem nada, e a que chamamos dinheiro, pareçam ter valor e possam ser trocados por objectos úteis. O propósito deste livro é examinar a organização social subjacente a este facto. Embora esta organização social não seja mais do que toda a organização social subjacente ao capitalismo, há uma razão para começarmos a nossa investigação pelo "lado do dinheiro". Isto porque uma parte importante da organização social, que nem sempre é aparente quando começamos pelo conceito de "capital", surge com maior nitidez quando consideramos o dinheiro como ponto de partida para a nossa análise. Esta parte prende-se ao facto de o capitalismo não poder existir, e nunca ter existido, isolado como um sistema fechado, contido em si mesmo, conforme se pressupõe habitualmente em grande parte da análise económica. Por outras palavras, a melhor via para entender a totalidade da organização social subjacente ao capitalismo é começar por uma pergunta muito simples: O que é que insufla o valor a estes pedaços de papel que não têm qualquer valor intrínseco? Esta pergunta, por seu turno, faz parte duma pergunta mais abrangente: O que é que determina o valor do dinheiro, quer ele consista de bocados de papel sem valor intrínseco ou de metais preciosos? Para estas perguntas tem havido duas respostas básicas em economia. A primeira proposta deste livro é que uma dessas respostas, a que é dada pela actual economia "predominante" (mainstream), não resiste a uma avaliação lógica. Portanto vou começar com uma crítica da economia "predominante" e, em especial, da noção de "equilíbrio" que lhe é central.
Uma crítica da noção predominante de equilíbrio
A teoria económica predominante toma a compensação do mercado (market clearing) como ponto de referência. Na sua percepção, a flexibilidade de preços que caracteriza os mercados no tipo ideal de economia capitalista, garante a equiparação da oferta e da procura num conjunto de preços de equilíbrio. As dotações que uma economia dispõe e cuja propriedade é distribuída de determinada maneira entre os agentes económicos são plenamente utilizadas para produzir um conjunto de bens cuja oferta é exactamente igual à sua procura neste conjunto de preços de equilíbrio. Decorre daí que numa economia dessas não existe a questão de qualquer desemprego involuntário, no sentido de uma oferta excessiva de mão-de-obra à taxa salarial prevalecente, em equilíbrio. Gostos, tecnologia, a dimensão das dotações e a sua distribuição pelos agentes económicos e as "condições de frugalidade" (para usar uma frase de Joan Robinson), ou aquilo a que alguns chamariam a "preferência no tempo" dos agentes económicos, determinam os preços de equilíbrio e os produtos neste mundo de agentes "racionais", onde as empresas maximizam lucros e indivíduos maximizam utilidades.
Mas esta noção predominante de equilíbrio só é logicamente sustentável num mundo sem dinheiro, razão por que não pode ser uma descrição logicamente válida para uma economia capitalista. Isto porque num mundo com dinheiro, de acordo com esta concepção, o mercado do dinheiro deve "compensar" a um determinado preço do dinheiro em termos dos bens não monetários. Isso só pode acontecer se o excesso na curva da procura de dinheiro tiver uma inclinação descendente em relação ao "preço do dinheiro". Por outras palavras, para uma dada oferta de dinheiro a procura por dinheiro tem que variar em proporção inversa ao preço do mesmo. Sendo o preço do dinheiro a recíproca do nível de preço das mercadorias em termos de dinheiro, isso implica que a procura de dinheiro tem que variar em proporção directa com o nível do preço das mercadorias. A economia predominante considerava isto como garantido, porque via o dinheiro apenas como um meio de circulação, de modo que quanto maior fosse o valor dos bens que têm de circular, maior seria a procura de dinheiro. Logo, com a produção ao nível do pleno emprego, o valor dos bens (e portanto o valor dos bens a circular) depende do seu nível de preço, a procura por dinheiro tem de estar relacionada positivamente ao nível de preços.
O papel do dinheiro como meio de circulação assegurava isso. O problema, contudo, é que o dinheiro também é uma forma de riqueza. Ele não pode ser um meio de circulação sem ser uma forma de riqueza, visto que até mesmo o anterior papel exige que o dinheiro seja mantido, mesmo que fugazmente, como riqueza. E quando o papel do dinheiro enquanto forma-de-riqueza é reconhecido, torna-se claro que a procura de dinheiro também depende dos retornos esperados de outras formas de riqueza. Se a procura de dinheiro depende das expectativas quanto ao futuro, então não há nenhuma razão para que a curva da procura do dinheiro deva ser inclinada em sentido ascendente em relação ao nível de preços, conforme exigido pela teoria "predominante", visto que qualquer alteração no nível de preços não pode deixar de alterar as expectativas.
Para sair deste atoleiro, a teoria predominante arranjou dois caminhos alternativos. Um deles é recusar, muito teimosamente, o papel do dinheiro como forma-de-riqueza e ver o dinheiro só como meio de circulação. O outro é reconhecer o papel do dinheiro como forma-de-riqueza mas assumir que as expectativas são sempre de um tipo que não cria qualquer problema à teoria, pelo menos no que se refere à existência e à estabilidade do equilíbrio. O primeiro é o caminho ortodoxo da constante k de Cambridge ou, o que de facto vem a dar na mesma, uma velocidade de circulação do dinheiro constante (sujeita a alterações autónomas a longo prazo), a qual é amplamente usada ainda hoje em trabalho empírico corrente do género monetarista. O segundo é o caminho do efeito de "equilíbrio real", cuja validade depende, entre outras coisas, do pressuposto de expectativas de preços não elásticos.
No entanto, estes dois caminhos estão bloqueados por contradições lógicas. O caminho da constante-Cambridge está bloqueado pela contradição óbvia de que o dinheiro não pode ser assumido logicamente como um meio de circulação a não ser que também possa funcionar como forma de riqueza. E se pode, então não há razão para que não o faça. E se o faz, então não podemos assumir uma constante k de Cambridge. O segundo caminho está bloqueado pela contradição de que expectativas de preços não elásticos pressupõem uma certa fixação aos preços, ou seja, a existência de alguns preços que estão colados, e num mundo de preços flexíveis não há razão para que seja este o caso. Segue-se que pura e simplesmente não há forma logicamente sustentável de construir uma estrutura teórica em conformidade com a percepção "predominante" num mundo com dinheiro e portanto para uma economia capitalista.
Por causa disso existe uma tradição alternativa na economia, a que eu chamo a tradição "proprietarista" ("propertyist"), que sempre considerou o valor do dinheiro como sendo fixado fora do reino da oferta e da procura. A este valor, fixado fora do reino da oferta e da procura, indivíduos habitualmente mantêm saldos de dinheiro a mais para além do que é exigido para efeitos de circulação: O dinheiro constitui tanto um meio de circulação como uma forma de manter riqueza. Neste caso, é impossível manter a lei de Say. Se a riqueza pode ser mantida sob a forma de dinheiro, então surge a possibilidade de superprodução ex-ante das mercadorias não monetárias. E esta superprodução ex-ante dá origem a uma verdadeira contracção da produção, não apenas das mercadorias não monetárias mas do dinheiro e das mercadorias não monetárias no seu conjunto, precisamente porque o preço do dinheiro em termos de mercadorias é fixado no exterior do reino da oferta e da procura, de modo que não se pode assumir que a flexibilidade do preço elimine essa sobreprodução ex-ante.
Segue-se, pois, que o reconhecimento do papel do dinheiro como forma de retenção de riqueza, o reconhecimento do facto de que o seu valor não pode ser determinado no interior do reino da oferta e da procura mas tem que ser fixado no exterior desse reino, e o reconhecimento da possibilidade de superprodução generalizada ou ? o que vem a dar na mesma ? do desemprego involuntário no sentido keynesiano, estão logicamente interligados e constituem a tradição proprietarista. Em contraste, a negação de cada um destes fenómenos também está interligada logicamente e constitui a tradição monetarista-walrasiana que se mantém predominantemente.
Dentro da tradição proprietarista, há duas contribuições principais. Uma é de Marx, que não só assinalou explicitamente a insustentabilidade de explicar o valor do dinheiro em termos de oferta e procura, mas também forneceu uma explicação alternativa para isso através da sua teoria do valor-trabalho. Sublinhou a existência em todas as épocas de uma "acumulação" ("hoard") de dinheiro como forma de guardar riqueza numa sociedade capitalista, e reconheceu, contra Ricardo, que fora um crente na lei de Say, a possibilidade da superprodução generalizada ex-ante como consequência desse facto. Mas nem Marx nem os seus seguidores aprofundaram essa contribuição fundamental de Marx; preferiram, em vez disso, seguir exclusivamente a outra importante descoberta teórica de Marx, nomeadamente a que se relaciona com a sua teoria da mais-valia. É por isso que se passaram três quartos de um século antes de os mesmos temas terem voltado à superfície durante a revolução keynesiana através dos escritos de Kalecky e de Keynes, entre outros, que constituíram o segundo principal grupo de contribuidores dentro da tradição proprietarista.
Claro que houve diferenças importantes entre Marx e Keynes na especificação das suas teorias. Enquanto Marx invocava a teoria do valor-trabalho para explicar a determinação do valor do dinheiro, Keynes achava que o valor do dinheiro em relação ao mundo das mercadorias era fixado através da fixação do valor do dinheiro em relação uma determinada mercadoria, nomeadamente o poder da força-de-trabalho (para usar a expressão de Marx). O facto de o custo hora do trabalho ser fixado num período específico, que foi o foco de análise de Keynes, foi o que deu ao dinheiro um valor finito e positivo em relação a todo o universo das mercadorias. E a fixidez dos salários em dinheiro não foi a causa do fracasso do mercado, como se tem admitido genericamente, mas o modus operandi do próprio sistema de mercado numa economia capitalista que necessariamente usa dinheiro. A superioridade da tradição proprietarista ao analisar o funcionamento da economia capitalista sobre a tradição monetarista-walrasiana deriva pois não só do seu maior "realismo" (por exemplo, o facto de o capitalismo sofrer crises de superprodução) mas também de aquela estar liberta das debilidades lógicas que afectam o monetarismo walrasiano.
Uma crítica da noção de capitalismo enquanto sistema isolado
Este livro apresenta também uma segunda proposta. O proprietarismo, apesar da sua superioridade sobre o monetarismo, continua incompleto. Não apresenta nenhum mecanismo convincente para assegurar que o nível de actividade duma economia capitalista se mantenha dentro dos limites que a tornem viável. A propensão duma economia capitalista para a superprodução generalizada torna-a essencialmente um sistema de constrangimento da procura (em que o constrangimento da oferta só se torna relevante em períodos excepcionais duma procura excepcionalmente alta). Mas se o capitalismo é um sistema de procura constrangida, então o que é que garante o facto de ele se manter viável, ganhando genericamente uma taxa de lucro que os capitalistas considerem adequada? As operações espontâneas dum sistema de procura constrangida não vão assegurar que ele funcione genericamente acima de um determinado grau de capacidade de utilização, que constitui o limiar da sua viabilidade. Conforme mostrou a discussão harrodiana sobre o crescimento, uma economia capitalista, entregue aos seus próprios dispositivos, não tem os meios para voltar atrás se entrar numa desaceleração. E como mostrou Kalecki no contexto dum sistema de procura constrangida, de que o universo harrodiano foi um exemplo específico, a tendência a longo prazo num sistema desses, na ausência de estímulos exógenos, é zero, o que certamente minaria a viabilidade dessa economia.
Ora bem, uma economia capitalista isolada, funcionando espontaneamente, não tem nenhuns estímulos exógenos. A inovação, o principal estímulo exógeno realçado por autores tão diferentes como Schumpeter e Kalecki, não é verdadeiramente um estímulo exógeno, visto que o ritmo de introdução da inovação em si mesmo não é independente do crescimento esperado da procura. E as despesas estatais, o outro principal estímulo exógeno que pode surgir numa economia capitalista isolada, não fazem parte verdadeiramente do funcionamento espontâneo do capitalismo (para além de ser um fenómeno que só adquiriu importância especial nos últimos anos). Daí que, até mesmo o proprietarismo continua incompleto. Depois de reconhecer correctamente que o sistema capitalista é propenso a uma deficiência da procura agregada, não oferece qualquer explicação sobre como, apesar disso, o sistema conseguiu sobreviver e prosperar durante tanto tempo.
Há aqui uma segunda questão com ela relacionada. Para a esclarecer, esqueçamos por instantes a primeira questão. Aceitemos que um estímulo exógeno sob a forma de inovações consegue sempre manter o nível da procura e portanto o nível de actividade na economia capitalista que constitui o nosso universo. Ora bem, mesmo que o valor do dinheiro em termos de mercadorias não monetárias seja dado do exterior do reino da oferta e da procura em qualquer período, se esse valor continuar a variar de forma ilimitada ao longo de períodos, através, por exemplo, duma inflação acelerada, então a existência continuada duma economia monetária normal mais uma vez é inexplicável. E se o nível de actividade tiver que se ajustar para manter os movimentos de preços "ao longo de períodos" dentro de limites, então esse nível pode muito bem cair abaixo do limiar que torna viável a economia, apesar da presença do estímulo exógeno. Segue-se que uma economia monetária tem que ter não apenas uma determinação "exterior" do valor do dinheiro em qualquer período, mas também qualquer mecanismo, que não seja o de ajustamentos no nível de actividade, para manter os movimentos de preço ao longo de períodos dentro de limites estritos. Um mecanismo óbvio é a fixidez de algum preço não só dentro do período mas também ao longo de períodos. Ou, dizendo de outro modo, o preço que é dado do "exterior" em qualquer período também deve estar a mudar lentamente ao longo de períodos. O proprietarismo continua incompleto porque não apresenta nenhuma razão para que isso aconteça. Daí que, apesar da sua superioridade sobre o monetarismo e o walrasianismo, o proprietarismo, tal como se apresenta, também não está isento de problemas lógicos.
A única forma de ultrapassar todos estes problemas é conceber o capitalismo como um modo de produção que nunca existe isoladamente, que está obrigatoriamente ligado aos modos pré-capitalistas que o rodeiam e que se mantém continuamente viável por se intrometer nos mercados pré-capitalistas. A limitação do proprietarismo é que, apesar de rejeitar o monetarismo por razões perfeitamente válidas, se manteve refém do mesmo pressuposto, de uma economia capitalista isolada e fechada, que caracterizava o monetarismo. Em resumo, a sua rejeição da perspectiva predominante não foi suficientemente radical e exaustiva.
Dizer que a economia capitalista precisa de se intrometer em mercados pré-capitalistas não é o mesmo que dizer, como o fez Rosa Luxemburgo, que ela precisa de "realizar" toda a sua mais-valia em cada período através de vendas ao sector pré-capitalista. Na verdade, o papel dos mercados pré-capitalistas nem sequer tem que ser quantitativamente significativo. Durante a maior parte do tempo a economia capitalista pode crescer pelos seus próprios meios, enquanto puder usar os mercados pré-capitalistas como meio de poder funcionar sempre que estiver num movimento descendente. E mesmo para este funcionamento, a dimensão quantitativa de vendas aos mercados pré-capitalistas não precisa de ser significativa. Com efeito, em rigor, enquanto a disponibilidade dos mercados pré-capitalistas possa instilar nos capitalistas suficiente confiança para fazerem investimentos, qualquer abrandamento pode ser travado ou mesmo abortado, sem interferência visível nos mercados pré-capitalistas. Por outras palavras, o que logicamente se exige é a existência de mercados pré-capitalistas em que se possa intrometer e não uma real intromissão significativa nesses mercados. Em resumo, constituem "mercados de reserva" a par do exército de reserva da força de trabalho. E assim é porque os bens do sector capitalista podem sempre desalojar a produção local na economia pré-capitalista, provocando nela a desindustrialização e o desemprego.
Essa deslocação periódica deixa atrás de si uma massa empobrecida na economia pré-capitalista, que constitui para o sector capitalista um segundo exército de reserva, situado à distância, para além do que existe dentro do próprio sector capitalista. Esse exército de reserva situado à distância garante que o custo hora do trabalho dos trabalhadores situados no meio desse exército de reserva só varie lentamente com o tempo. Em resumo, esses trabalhadores são "aceitadores de preços" (price-takers) ? ou, mais rigorosamente, as suas reivindicações ex ante de salários reais são esmagadas precisamente porque estão situados no meio de amplas reservas de mão-de-obra. Como os produtos que eles produzem entram nos custos de salários e matérias-primas do sector capitalista no seu âmago, desempenham o papel de "pára-choques" do sistema capitalista. Por causa deles, a economia capitalista mantém-se viável tanto no sentido de ter um nível de actividade que ultrapassa o nível do limiar que lhe fornece a taxa de lucro mínimo aceitável, como no sentido de que o seu sistema monetário pode ser sustentado sem qualquer receio de aceleração da inflação.
Em resumo, o modo de produção capitalista precisa de estar sempre rodeado por modos pré-capitalistas que não são deixados na sua pureza preservada, mas são modificados e alterados de um modo que faz com que sirvam melhor as necessidades do capitalismo. O carácter incompleto do proprietarismo pode ser ultrapassado através do reconhecimento de que o capitalismo tem sempre integrada esta condição.
Esta percepção, embora tenha alguma afinidade com a de Rosa Luxemburgo, difere da dela de modo crucial. Primeiro, conforme já referido, realça mais o papel qualitativo dos mercados pré-capitalistas do que o seu papel quantitativo, e evidentemente não os considera como o local para a realização de toda a mais-valia do sector capitalista em cada período. Segundo, não considera o sector pré-capitalista como sendo assimilado pelo sector capitalista e portanto desaparecendo com o tempo como uma espécie distante; pelo contrário, mantém-se como uma economia devastada e degradada, local duma ampla massa empobrecida de pequenos produtores desalojados, uma reserva de trabalho longínqua, que serve as necessidades do capitalismo garantindo a estabilidade do sistema monetário.
Relações sociais subjacentes ao dinheiro
Assim, subjacente a uma economia monetária moderna, existe um conjunto de relações sociais que são necessariamente desiguais e opressivas. A estabilidade do valor do dinheiro baseia-se na persistência dessas relações. Claro que isso não significa que cada economia capitalista utilizadora de dinheiro tenha que impor essas relações desiguais e opressivas em determinado segmento especial do seu ambiente pré-capitalista. Habitualmente essas economias capitalistas estão interligadas num sistema monetário internacional e a potência capitalista dominante na altura assume a tarefa de impor as relações desiguais requeridas ao mundo "exterior" das economias pré-capitalistas e semi-capitalistas. Assim, a estabilidade do valor do dinheiro fica ligada à estabilidade do sistema monetário internacional, assumindo sobretudo a forma da manutenção da confiança dos detentores da riqueza do mundo capitalista na divisa da economia dominante como um meio estável para a detenção da riqueza.
Nem sempre é óbvio que esse papel da divisa do país dominante decorra da sua capacidade de sustentar um conjunto de relações globais desiguais e opressivas. Por vezes pensa-se que esse papel decorre de a divisa dominante estar ligada a metais preciosos. Mas isso é um erro. A ligação aos metais preciosos, por si só, não pode ser sustentada na ausência de tais relacionamentos. A estabilidade do sistema monetário internacional durante os anos do padrão ouro verificou-se não devido ao apoio do ouro às divisas, incluindo em especial a libra esterlina, que era a divisa dominante da época; resultou de a Grã-Bretanha poder impor um conjunto de relações opressivas e desiguais sobre grandes faixas do globo que constituíam o seu império formal e informal. A manutenção da ligação ao ouro era um sinal para os detentores de riqueza de que essas relações continuavam. E quando essas relações foram desgastadas no período entre guerras, apesar de a libra esterlina estar formalmente ligada ao ouro novamente, essa ligação não pôde ser sustentada.
Segue-se daqui que, mesmo na ausência de qualquer ligação anterior a metais preciosos, enquanto a potência capitalista dominante puder estabelecer essas relações globais, a sua divisa continua a ser considerada "tão boa como o ouro"; ou seja, mesmo um padrão puro do dólar só pode constituir o sistema monetário internacional enquanto os Estados Unidos puderem estabelecer a hegemonia global exigida para instilar a confiança entre os detentores de riqueza do mundo capitalista de que a sua divisa é "tão boa como o ouro". No entanto, uma pré-condição para isso é que o valor da sua força de trabalho, em termos da sua divisa, tem que ser relativamente estável (o que exclui uma inflação significativa, quanto mais uma inflação acelerada no seu próprio território); e, relacionado com isso, o valor das importações cruciais que entram no custo de salários e no custo dos materiais, também tem que ser relativamente estável. Com efeito, enquanto esta última condição se cumprir e as reservas de mão-de-obra internas forem suficientemente grandes para impedir qualquer aumento autónomo de salários, a inflação pode ser excluída como fonte de desestabilização do papel da sua divisa como meio estável de detenção de riqueza. Como a contribuição mais significativa é a importação do petróleo, um padrão dólar pode funcionar enquanto o preço em dólares do petróleo for relativamente estável. Portanto, o que parece à primeira vista ser um padrão dólar puro, se olharmos mais de perto tem que ser um patrão petro-dólar. O sistema monetário pós Bretton Woods pode ser caracterizado não como um padrão dólar, mas mais rigorosamente como um padrão petro-dólar. Segundo todas as aparências, o mundo pode ter acabado com o dinheiro mercadoria com a separação do dólar do ouro. Mas o ponto crucial da argumentação deste livro é que nunca pode ser assim. O valor do dinheiro, mesmo o dinheiro papel ou crédito, deriva da sua ligação ao mundo das mercadorias.
A procura mundial de petróleo e gás natural que ocorre presentemente, liderada pelos Estados Unidos, não é alimentada apenas pelo desejo de adquirir estes recursos para utilização. É alimentada muito mais fortemente pela necessidade de preservar o padrão petro-dólar. Até Alan Greenspan reconheceu abertamente que a invasão do Iraque foi feita para assumir o controlo sobre as suas imensas reservas petrolíferas; sem dúvida há motivos semelhantes subjacentes à ameaça de acção contra o Irão. Uma percepção comum é que essa aquisição do controlo é necessária aos Estados Unidos e a outros países avançados porque são os principais consumidores deste recurso, que actualmente está em mãos alheias. Pode ser que assim seja. Mas um motivo extremamente significativo que quase invariavelmente é esquecido é que o controlo do petróleo é essencial para a preservação do actual sistema monetário internacional.
Isto à primeira vista pode parecer estranho porque a tentativa desse controlo tem sido acompanhada por um aumento maciço do preço em dólares do petróleo. Mas isso é porque a invasão do Iraque não ocorreu de acordo com o planeado. E, de resto, o aumento do preço do petróleo, per se, não é desestabilizador se não provocar persistentemente uma inflação mais alta e se não der origem a expectativas de aumentos persistentes no preço do petróleo ou no nível de preços em geral no país dominante. Os obituários ao sistema monetário internacional dominante, relativos à hegemonia do dólar, são prematuros. Mas, embora possa ser assim, há a importante sensação de que o mundo capitalista está cada vez mais acossado por dificuldades.
O capitalismo na maturidade
Rosa Luxemburgo extraiu da sua análise a conclusão de que o sistema capitalista estava confrontado com a inevitabilidade do "colapso", quando todo o sector pré-capitalista fosse assimilado ao sector capitalista. Essa conclusão não se segue da argumentação apresentada neste livro; e nenhuma conclusão assim pode ser retirada validamente acerca do capitalismo. O capitalismo contemporâneo, porém, está confrontado com graves dificuldades, muitas das quais surgem do avanço do próprio capitalismo.
São óbvias duas consequências da maturidade. Primeiro, o peso do sector pré-capitalista, e portanto do mercado pré-capitalista, diminui ao longo do tempo em relação à dimensão do sector capitalista, de modo que já não consegue desempenhar o mesmo papel de fornecer um estímulo exógeno ao sector capitalista como fazia anteriormente. Segundo, o declínio na quota das importações (excluindo o petróleo) das mercadorias primárias no valor bruto da produção da metrópole capitalista, em si mesmo uma herança do esmagamento dos produtores primários, implica que qualquer outro esmagamento se torna cada vez mais infrutífero. A compressão das reivindicações ex ante desses produtores deixa de ser uma arma potente para impedir a aceleração da inflação no nível de actividade prevalecente.
O primeiro destes problemas pode ser ultrapassado através da "gestão da procura" pelo estado. Mas com a globalização da finança, nem todos os estados podem fazer isso, visto que esse activismo estatal assusta os especuladores. O governo do país capitalista dominante, os Estados Unidos (cuja divisa é considerada "tão boa como o ouro") ainda consegue aguentar um défice fiscal para estimular a procura mundial, e um défice corrente em relação às potências capitalistas suas rivais por lhes oferecer um mercado maior. Em resumo, pode agir como estado mundial substituto, expandindo o nível de actividade na economia capitalista mundial.
Há dois obstáculos óbvios para isso. Primeiro, o governo dos EUA, que pode agir como estado mundial substituto, é apesar de tudo um estado nação. Dificilmente se pode esperar que venha a ser suficientemente altruísta para estimular o nível de actividade no mundo capitalista no seu conjunto, e não unicamente dentro das suas fronteiras, aumentando a dívida externa da sua economia (que essa intervenção expansionista provocaria). Segundo, mesmo a um nível de actividade relativamente baixo no mundo capitalista, a economia dos EUA já está a ficar cada vez mais endividada. Dificilmente se pode esperar que este problema se agrave ainda mais por razões altruístas, o que implica que o estímulo da procura no mundo capitalista, e daí a tendência da taxa de crescimento, continuará a manter-se baixa.
A crescente dívida dos EUA, mesmo ao actual nível de actividade, representa uma ameaça potencial para a sua hegemonia, e é na verdade um desenvolvimento único. A ideia de a potência capitalista dominante ser também a mais endividada representa uma situação sem precedentes na história do capitalismo. A bem dizer, a principal potência capitalista, a fim de preservar o seu papel de liderança satisfazendo as ambições das potências suas recém industrializadas potências rivais novamente, tem necessariamente numa determinada fase da sua carreira que gerir um défice de transacções correntes com elas. A Grã-Bretanha, a potência capitalista dominante no seu tempo, teve que fazer o mesmo nos finais do século XIX e início do século XX, um período de difusão significativa do capitalismo. Mas a Grã-Bretanha não se endividou nesse processo; pelo contrário, tornou-se a mais importante nação credora do mundo exactamente durante esse mesmo período. Hoje, o caso com os Estados Unidos é exactamente o oposto.
A principal razão para essa diferença é que a Grã-Bretanha usou as suas colónias e semi-colónias tropicais para encontrar mercados para os seus produtos, que estavam a ser cada vez mais desdenhados na metrópole; e como as mercadorias primárias produzidas por essas colónias e semi-colónias eram procuradas pelas suas rivais recém-industrializadas, eram produzidas para ganhar um excedente de exportação em relação a estas últimas, o qual não só equilibrou o défice de contas correntes da Grã-Bretanha com elas, mas ainda forneceu uma quantia extra para exportação de capital para essas economias recém-industrializadas. A Grã-Bretanha não teve que pagar por essa quantia extra, uma vez que se apropriava pura e simplesmente de graça de uma parte da mais-valia produzida nessas colónias e semi-colónias que financiava essas exportações de capital. Hoje aos Estados Unidos faltam tais colónias; e, conforme já mencionado, a importância relativa em termos de valor de exportações de mercadorias primárias para a metrópole diminuiu de tal forma que tal arranjo já não funcionará por muito tempo. O controlo político sobre os países ricos em petróleo oferece algumas perspectivas de ressuscitar com êxito o antigo arranjo colonial ao estilo britânico para pagar as contas correntes sem ficar endividado. E é isso, conforme já vimos, exactamente o que os Estados Unidos tencionam obter.
Assim, o que se perfila no horizonte é um prolongado período de crescimento lento para a metrópole capitalista, o crescente endividamento da principal potência capitalista e a ameaçadora incerteza quanto à continuação do padrão petrodólar e quanto à saúde geral do sistema monetário internacional. Tudo isto está a suceder em meio a "abertura" do terceiro mundo ao movimento desenfreado da finança globalizada e das operações sem restrições das corporações multinacionais, e de tentativas da potência capitalista dominante para a reconquista política dos países do terceiro mundo ricos em petróleo. Na ausência de um esforço consciente para transcender esta situação, a humanidade ficará presa nas garras viciosas de uma dialéctica de engrandecimento imperialista, tanto engendrando como derivando legitimidade a partir de um terrorismo destrutivo como contrapartida. Ninguém pode acreditar honestamente que é este o destino final da humanidade. Para ultrapassar esta conjuntura, contudo, temos primeiro de nos libertar das viseiras da teoria económica dominante.
[*] Economista, responsável pela cadeira Sukhamoy Chakravarty na Universidade Jawaharlal Nehru, Nova Delhi. Autor de numerosas obras, dentre as quais: Accumulation and Stability Under Capitalism , The Retreat to Unfreedom , Lenin and Imperialism: An Appraisal of Theories and Contemporary Reality , Marx's Capital: An Introductory Reader e The Value of Money , do qual foi extraído o presente excerto.
O original encontra-se em http://cup.columbia.edu/book/978-0-231-14676-0/the-value-of-money/excerpt . Tradução de Margarida Ferreira.
Este excerto encontra-se em http://resistir.info/ .