Parei, sentei-me no muro, e um comboio vinha que passou rente a mim. O amor, o sexo, a amizade, as relações domésticas, as relações ocasionais, as rotinas diárias, a política, tudo - nada disso constituía um todo harmonioso de que às vezes o equilíbrio se rompesse. Eram como numerosas superfícies em movimento, que se sobrepunham, coincidiam parcialmente, intersectavam-se, afastavam-se, segundo uma multiplicação de acasos tão grande, e uma possibilidade combinatória tão variável com as pessoas envolvidas ainda que ocasionalmente, que a ideia de uma lei, de uma ordem, de uma regra, de uma norma, de um limite seguro entre o bem e o mal, nem sequer seria válida para uma aldeia perdida nas montanhas, isolada do mundo, onde meia dúzia de pessoas apenas repetissem, de geração em geração, os mesmos gestos e os mesmo passos. Numa vida, como a que eu via que a vida era, em que tudo dependia de tudo, e tudo correspondia a tudo, onde se diria que a regra seria a quintessência acumulada de uma experiência de grandes números, é que precisamente a regra se tornava fluida, ou falsa, ou imposta por uns a todos os outros, em nome do que na verdade não era directamente comum a todos. Porque nas diversas superfícies deslizantes em que a casa instante alguém mudava de superfície sem deixar de pertencer a todas elas, nem toda a gente estava na mesma situação. Uns eram mais livres do que outros, não por fazerem o que lhes apetecia, quando lhes apetecia, e por poderem fazê-lo (no que eram escravos de uma liberdade feita da não-liberalidade dos mais), mas porque ou tinham força suficiente para recusar, ou não sentiam desejo (por não terem tendência para isso) de usar de si mesmos e dos outros no plano em que se cruzavam. O não sentir desejo seria algo de igual a ter a ter força para resistir? E resistir a quê? Ao que era. Ao que seria Ao que deveria ser? E quem definia soberanamente tudo isto? A minha consciência? Qual (psicológica, moral, política, sei lá o quê)? A autoridade da maioria? A ditadura? As igrejas? Os hábitos, os preconceitos, os egoísmos, as invejas e as ambições?
BLOGADO ?S 18:05:28
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