sou homem branco cis hétero ocidental
não reconheço as categorias
homem
branco
cis
hétero
ou ocidente
mas sou homem branco cis hétero ocidental
sinto muitas vezes como mulher
comovo-me ou danço com música de negros
pratico uma religião do oriente
mas sou homem branco cis hétero ocidental
na verdade
qualquer sentimento é humano
a música é uma linguagem universal
e o buddhismo é de dentro e de fora
mas sou homem branco cis hétero ocidental
pois é
sou homem branco cis hétero e ocidental
e depois?
depois continuo homem branco cis hétero e ocidental
E qual o limite exato
que separa o rio da terra de que bebem
estas árvores refletidas na água?
Onde estão as raízes dos reflexos
destes amieiros e carvalhos
a beira-rio?
A gravitação dos astros, a rotação
da terra, o simples peso
da combinação infinita de duas partículas
de hidrogênio e apenas uma
de oxígeno
movem o fluxo de que bebem
os javalis e os olhos dos amantes.
À beira desta terra passa água.
Dizemos que o Minho corre para o mar.
Dizemos Mera, Parga, Ladra,
Narla, Rato...
Os nomes construíram geografias
em que habitamos,
mapas que desenhamos
no território de um país fantasma.
A fantasia de conhecer o espaço
modificou o mundo à nossa imagem.
Destes moinhos e caneiros
nasceram as barragens que assolagaram vidas,
e iluminaram noites.
À beira desta água nós passamos
vida ante vida.
Apesar dos mapas,
fluímos.
Diluídos no tempo
somos
o que fazem de nós as margens e os caneiros
que nos conduzem as águas.
Domesticamos as correntes mas ignoramos
o seu mistério.
O Minho não existe.
Os átomos não são certezas.
Água
é só um nome.
Nem sequer o reflexo
da rama a tremer na superfície
oferece uma ideia a que agarrar-se.
Nasceste comigo para nascer de mim
mas não consigo
parir-te.
Sinto que estás
dentro das tripas desejando
somente ser tocada.
E quando o ar dá carícias ao peito
por dentro da laringe e borboletas
saltitam na barriga como querendo
querer-me
sei que o faço.
Eu também queria que fosse mais.
Mas passo a vida a ignorar-te e a ignorar-me
guardando as borboletas com uma pedra no peito.
Como farei para querer-te
eu, que mal consigo querer-me?
Como farei para querer-me em ti?
Tu, mulher impossível no meu corpo, como?
* * *
Hoje começa a nossa história.
Hoje vou dar-te a mão e prometo
que não te solto. Hoje
vamos andar juntinhos
sentindo os corações unidos.
Hoje adormeço contigo nos meus braços.
E hoje apresento-te aos amigos,
que há gente que quero que conheças,
e já começa a ser tarde.
Dou-te um presente de anos,
que é simplesmente um nome,
e vamos juntos dançar
a vida.