Ghenito
Ghenito

que escreve esta criança na carteira da escola?
que escreve esta criança no seu gabinete para fazer memória?
que contas faz de cabeça?

a contabilidade infinita dos anos até setenta
soma a tropa e os filmes
as associações de vizinhos e os partidos
o futebol e as fábricas de conserva
o carnaval, a tasca, o concelho
a padaria, a pensão de sara e a vida na alemanha
as horas de carro e a geografia inteira do mundo

a tua vida não cabe na memória

e no entanto mira esta foto

passaram os anos e ainda não se sabe
se a olhada é decidida e incisiva
ou simplesmente míope e forçada

és uma esfinge sui generis sem dúvida

mas vejo-te na carteira e não te distingo deste pai que tenho

passou o tempo
e pouco mais

os óculos abriram-te os olhos
e o cabelo abandonou a cabeça

aprendeste da vida mais que livros
e agora
o teu sorriso é como um livro aberto
que atravessa gerações e anos

homem pequeno
menino grande
avô
filho de alfonso que faz empadas em casa
sobrinho de juanito que escreve as crónicas da vida

o tempo não passou
está passando

escorre entre os dedos que pulsam teclas no computador
passa entre as mãos que tentam agarrá-lo com palavras
esvai-se como o mundo inteiro quando tiramos os óculos

o tempo é pouco e nunca para

igual que tu

Ramón
Ramón

resta-nos tanto mar por engolir
amigo
tanta verdade de sangue descarnada
tanta brecha que coser
e velear à sua margem

resta-nos tanto mar por engolir

vemo-lo desta praia de pedrinhas e cunchas
que o tempo desfez

antes eram os cons de semuinho
ou o com de três pés
ou a punta cavalo

mas o farol fez-se areia
e como a areia
continuamos mareados

o tempo fez-se idade

embarcados nesta distância que nos une
esta dorna que é um presente de gerações e anos
dalguma maneira conseguimos viver sem recordar-nos

surpreende-nos um dia
o piano esquecido cujo pedal deixa ainda reverberar sakuras
ou um disco de tangos
e todos os recordos são presentes do passado

o tempo
vemo-lo agora
fez-se idade

o tempo
que será história

de nós
talvez nada se salve na memória
de todos

talvez lembranças baças ou só nomes em livros
que ninguém leia
- e se os lessem, sejamos sérios, o que leriam? -

talvez nada tenhamos feito quando o vento da história nos sobarde a nos rebentar a vela

talvez engulamos o mar de vaga em vaga
talvez não possamos mais coser a brecha
talvez só fique de nós esta verdade de sangue

nem somos nem seremos nada

mas ao enfrentar a morte
como a enfrentamos agora nestes versos
flutua ainda no mar uma certeza

que cada vento
que alguma vez navegámos juntos nesta dorna
foi para o mundo ser melhor
agora

Uma visita ao casarão do Sr. Fuji
Uma visita ao casarão do Sr. Fuji

Está fora da vila, a alguns kilómetros de distância.
Caminhei até lá, na companhia de um lenhador,
um percurso sinuoso através de pinhais esverdeantes.
À nossa volta, no vale, rebentos selvagens de ameixeiras de perfume doce.
Cada vez que o visito ganho alguma coisa nova
e lá estou realmente à vontade.
Os peixes do estanque são grandes como dragões
e a floresta que o circunda é calma durante todo o dia.
O interior desta casa está cheio de tesouros:
volumes de livros espalhados por toda a parte!
Inspirado, abandonei o meu kesa, naveguei entre os livros
e compus os meus próprios versos.
Ao pôr do sol, caminho através do corredor do oeste
e sou deleitado de novo por um bando de pássaros primaveris.

Tradução do inglês a partir do trabalho de John Stevens. Dewdrops on a Lotus Leaf - Zen Poems of Ryôkan, Shambala, 1993, USA.

(Ryôkan)

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 ... 29 >>