Rui Davide é um cantor portuense, com uma voz privilegiada e que vem a Ourense por terceira vez. O seu repertório é formado por música de intervenção dos anos 60 e 70: Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Fausto... e ainda músicas de ícones brasileiros como o Caetano Veloso.
O Concerto decorrerá nesta sábado, dia 31, no local social A Esmorga, no seio das II Jornadas de Língua de Ourense. A entrada é de graça.
O evento é denominado pelo autor Sons e Signos. Em suas próprias palavras:
"Sons e signos é uma escolha muito pessoal de entre o universo dos grandes escritores de canções.
A palavra e a música entrelaçadas, de mãos dadas. A canção-documento, a canção que fixa o instantâneo, a canção que canta o protesto. Datadas, mas dotadas de uma expressão artística, estética e poética inquestionável que lhes garantem uma intemporalidade própria para lá do que representam. Como signo e significado. Som e signo."
Eis as letras dalguns dos temas que vai tocar:
Zeca Afonso
Era um redondo vocábulo
A morte saiu à rua
Maio Maduro Maio
Coro da Primavera
Mulher da Erva
Cantar Alentejano
Sérgio Godinho
Que força é essa
Cuidado com as imitações
O meu compadre
Fausto
O barco vai de Saída
Navegar Navegar
Cantar Alentejano
(José Afonso)
Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na emvida
Baleizão a viu morrer
Ceifeiras na manhãfria
Flores na campalhevãopôr
Ficou vermelha a campina
Do sanguequeentão brotou
Acalma o furorcampina
Que o teuprantonão findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou
Aquela pombatãobranca
Todos a querem p'ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti
Aquela andorinhanegra
Bate as asas p'ra voar
Ó Alentejo esquecido
Indaumdia hás-de cantar
Maio, MaduroMaio
(José Afonso)
Maio maduro Maio, quem te pintou?
Quemte quebrou o encanto, nuncate amou.
Raiava o soljá no Sul.
E uma falua vinhalá de Istambul.
Sempredepois da sesta chamando as flores.
Era o dia da festaMaio de amores.
Era o dia de cantar.
E uma falua andava ao longe a varar.
Maio com meu amigo quem dera já.
Sempre no mês do trigo se cantará.
Qu?importa a fúria do mar.
Que a voz não te esmoreça vamos lutar.
Numa rua comprida El-rei pastor.
Vende o soro da vida que mata a dor.
Anda ver, Maio nasceu.
Que a voz não te esmoreça a turba rompeu.
Mulher da Erva
(José Afonso)
Velha da terra morena
Pensa que é já lua cheia
Vela que a onda condena
Feita em pedaços na areia
Saia rota subindo a estrada
Inda a noite rompendo vem
A mulher pega na braçada
De erva fresca supremo bem
Canta a rola numa ramada
Pela estrada vai a mulher
Meu senhor nesta caminhada
Nem m'alembra do amanhecer
Há quem viva sem dar por nada
Há quem morra sem tal saber
Velha ardida velha queimada
Vende a fruta se queres comer
A noitinha a mulher alcança
Quem lhe compra do seu manjar
Para dar à cabrinha mansa
Erva fresca da cor do mar
Na calçada uma mancha negra
Cobriu tudo e ali ficou
Anda, velha da saia preta
Flor que ao vento no chão tombou
No Inverno terás fartura
Da erva fora supremo bem
Cantarola tua amargura
Manhã moça nunca mais vem.
Coro da Primavera
(José Afonso)
Cobre-te canalha
Na mortalha
Hoje o rei vai nu
Os velhos tiranos
De há mil anos
Morrem como tu
Abre uma trincheira
Companheira
Deita-te no chão
Sempre à tua frente
Viste gente
Doutra condição
Ergue-te ó Sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores
Livra-te do medo
Que bem cedo
Há-de o Sol queimar
E tu camarada
Põe-te em guarda
Que te vão matar
Venham lavradeiras
Mondadeiras
Deste campo em flor
Venham enlaçadas
De mãos dadas
Semear o amor
Ergue-te ó Sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores
Venha a maré cheia
Duma ideia
P'ra nos empurrar
Só um pensamento
No momento
P'ra nos despertar
Eia mais um braço
E outro braço
Nos conduz irmão
Sempre a nossa fome
Nos consome
Dá-me a tua mão
Ergue-te ó Sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores
A Morte Saiu à Rua
(José Afonso)
A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai
O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu
Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou
Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que umd ia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação.
Era um Redondo Vocábulo
(José Afonso)
Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar,
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio,
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança,
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa
Que força é essa
(Sérgio Godinho)
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Construir as cidades para os outros
Carregar pedras, desperdiçar
Muita força pra pouco dinheiro
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Muita força pra pouco dinheiro
Que força é essa
que força é essa
que trazes nos braços
Que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
que força é essa, amigo
Que te põe de bem com os outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo
que força é essa, amigo
Não me digas que não me compreendes
Quando os dias se tornam azedos
Não me digas que nunca sentiste
Uma força a crescer-te nos dedos
E uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compreendes
Que força é essa?
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Construir as cidades para os outros
Carregar pedras, desperdiçar
Muita força pra pouco dinheiro
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Muita força pra pouco dinheiro
Que força é essa?
O meu compadre
(Sérgio Godinho)
O meu compadre
Que é rico, disse-me
Tira os olhos do chão
Aceita o meu conselho
Não aceites derrotas
Tira os lhos do chão
Tira os olhos do chão
E eu respondi
Ó meu amigo, ó meu palerma
Se eu tenho os olhos no chão
Não é por estar derrotado
É pra ver o meu futuro
Em função do meu passado
É pra ver o caminho
E é pra ver o que calco
Que eu não ando nas nuvens
A pisar pó de talco
A pisar pó de talco
Vamos, vamos, vamos
Tomar cuidado
Com promessas assinadas
Em papel molhado
O meu compadre
Que é rico, disse-me:
Eu cá sou democrata
Cumprimentos as vizinhas
Como pão e sardinhas
Até as como da lata
Que eu cá sou democrata
E eu respondi:
Ó meu amigo, ó meu cretino
Democratas assim
Tem a gente de sobra
A vender banha de cobra
E a afinar o latim
Pela nota corrente
e pela nota de mil
Democratas assim
Até há dois no Brasil
Até há dois no Brasil
Vamos, vamos, vamos
Cuidado com as Imitações
(Sérgio Godinho)
Estimado ouvinte já que agora estou consigo
peço apenas dois minutos de atenção
é pra contar a história de um amigo
Casimiro Baltazar da Conceição
O Casimiro talvez você não conheça
a aldeia donde ele vinha nem vem no mapa
mas lá no burgo por incrível que pareça
era mais famoso que no Vaticano o Papa
O Casimiro era assim como um vidente
tinha um olho mesmo no meio da testa
isto para lá dos outros dois é evidente
por isso façamos que ia dormir a sesta
Ficava de olho aberto
via as coisas de perto
que é uma maneira de melhor pensar
via o que estava mal
e como é natural
tentava sempre não se deixar enganar
e dizia ele com os seus botões
Cuidado Casimiro
cuidado com as imitações
cuidado minha gente
cuidado justamente com as imitações
Lá na aldeia havia um homem que mandava
toda a gente um por um pôr-se na bicha
e votar nele e se votassem lá lhes dava
um bacalhau um pão-de-ló uma salsicha
E prometeu que construía um hospital
uma escola e prédios de habitação
e uma capela maior que uma catedral
pelo menos a julgar pela descrição
Mas o Casimiro que era fino de ouvido
tinha as orelhas equipadas com radar
ouvia o tipo muito sério e comedido
mas lá por dentro com o rabinho a dar a dar
E punha o ouvido atento
via as coisas por dentro
que é uma maneira de melhor pensar
via o que estava mal
e como é natural
tentava sempre não se deixar enganar
e dizia ele com os seus botões
Cuidado Casimiro ...
Ora o tal tipo que mandava lá na aldeia
estava doido já se vê com o Casimiro
de cada vez que sorria à plateia
lá se lhe viam os dentes de vampiro
De forma que para comprar o Casimiro
em vez do insulto do boicote ou da ameaça
disse-lhe Sabe que no fundo o admiro
vou erguer-lhe uma estátua aqui na praça
Mas o Casimiro que era tudo menos burro
e tinha um nariz que parecia um elefante
sentiu logo que aquilo cheirava a esturro
ser honesto não é só ser bem-falante
A moral deste conto
vou resumi-la e pronto
cada qual faz o que melhor pensar
não é preciso ser
Casimiro para ter
sempre cuidado para não se deixar levar
Cuidado Casimiro ...
Mudemos de assunto
Andas aí a partir corações
como quem parte um baralho de cartas
cartas de amor
escrevi-te eu tantas
às tantas, aos poucos eu fui percebendo
às tantas, aos poucos
eu fui percebendo
às tantas eu lá fui tacteando
às cegas eu lá fui conseguindo
às cegas eu lá fui abrindo os olhos
E nos teus olhos como espelhos partidos
quis inventar uma outra narrativa
até que um dia ai me chegou aos ouvidos
e era só eu a vogar à deriva
e um animal sempre foge do fogo
e eu mal gritei: fogo!
mal eu gritei: água!
que morro de sede
achei-me encostado à parede
gritando: Livrai-me da sede!
e o mar inteiro entrou na minha casa
E nos teus olhos inundados do mar
eu naveguei contra minha vontade
mas deixa lá, que este barco a viajar
há-de chegar à gare da sua cidade
e ao desembarque a terra será mais firme
há quem afirme
há quem assegure
que é depois da vida
que a gente encontra a paz prometida
por mim marquei-lhe encontro na vida
marquei-lhe encontro ao fim da tempestade
Da tempestade, o que se teve em comum
é aquilo que nos separa depois
e os barcos passam a ser um e um
onde uma vez quiseram quase ser dois
e a tempestade deixa o mar encrespado
por isso cuidado
mesmo muito cuidado
que é fragil o pano
que veste as velas do desengano
que nos empurra em novo oceano
frágil e resistente ao mesmo tempo
Mas isto é um canto
e não um lamento
já disse o que sinto
agora façamos o ponto
e mudemos de assunto
sim?
Fausto
O barco vai de saída
O barco vai de saída
Adeus ó cais de Alfama
Se agora vou de partida
Levo-te comigo ó cana verde
Lembra-te de mim ó meu amor
Lembra-te de mim nesta aventura
Pra lá da loucura
Pra lá do equador
Ah mas que ingrata ventura
Bem me posso queixar
Da Pátria a pouca fartura
Cheia de mágoas ai quebra-mar
Com tantos perigos ai minha vida
Com tantos medos e sobressaltos
Que eu já vou aos saltos
Que eu vou de fugida
Sem contar essa história escondida
Por servir de criado essa senhora
Serviu-se ela também tão sedutora
Foi pecado
Foi pecado
E foi pecado sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa
Gingão de rota batida
Corsário sem cruzado
Ao som do baile mandado
Em terras de pimenta e maravilha
Com sonhos de prata e fantasia
Com sonhos da cor do arco-íris
Desvairas se os vires
Desvairas magia
Já tenho a vela enfunada
Marrano sem vergonha
Judeu sem coisa nem fronha
Vou de viagem ai que largada
Só vejo cores ai que alegria
Só vejo piratas e tesouros
São pratas são ouros
São noites são dias
Vou no espantoso trono das águas
Vou no tremendo assopro dos ventos
Vou por cima dos meus pensamentos
Arrepia
Arrepia
E arrepia sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa
O mar das águas ardendo
O delírio dos céus
A fúria do barlavento
Arreia a vela e vai marujo ao leme
Vira o barco e cai marujo ao mar
Vira o barco na curva da morte
Olha a minha sorte
Olha o meu azar
E depois do barco virado
Grandes urros e gritos
Na salvação dos aflitos
Esfola
Mata
Agarra ai quem me ajuda
Reza
Implora
Escapa ai que pagode
Reza
Tremem heróis e eunucos
São mouros são turcos
São mouros acode
Aquilo é uma tempestade medonha
Aquilo vai pra´lá do que é eterno
Aquilo era o retrato do inferno
Vai ao fundo
Vou ao fundo
E vai ao fundo
Que vida boa era a de Lisboa
Navegar, Navegar, de Fausto
Navegar, navegar
Mas ó minha cana verde
Mergulhar no teu corpo
Entre quatro paredes
Dar-te um beijo e ficar
Ir ao fundo e voltar
Ó minha cana verde
Navegar, navegar
Quem conquista sempre rouba
Quem cobiça nunca dá
Quem oprime tiraniza
Naufraga mil vezes
Bonita eu sei lá
Já vou de grilhões nos pés
Já vou de algemas nas mãos
De colares no pescoço
Perdido e achado
Vendido em leilão
Eu fui a mercadoria
Lá na praça de Mocá
Quase às avé-marias
Nos abismos do mar
Navegar, navegar...
Já é tempo de partir
Adeus morenas de Goa
Já é tempo de voltar
Tenho saudades tuas
Meu amor
De Lisboa
Antes que chegue a noite
Que vem do cabo do mundo
Tirar vidas à sorte
Do fraco e do forte
De cima e do fundo
Trago um jeito bailarino
Que apesar de tudo baila
No meu olhar peregrino
Nos abismos do mar