No ultimo número, o 36, do Abrente, o vozeiro de Primeira Linha, já disponível em papel, e na rede em pdf ou html, publico o artigo que agora reproduzo cá. O número completa-se com artigos Contra a mística e o idealismo no MLNG, de André Seoane Antelo; Algumhas notas para o debate a respeito do laicismo, de Domingos A. Garcia Fernandes; Processo de normalizaçom do euskara e construçom nacional, de Mikel Irastortza; O País Valenciano e a articulaçom dos Països Catalans, de Toni Gisbert; a Editorial sob o título de Nem espanholismo, nem autonomismo. Adiante com a nova esquerda independentista; e umha contra capa dedicada às eleiçons do 19-J na CAG: Vota NÓS-UP.
Viva o matrimónio?
A reforma do Código Civil espanhol (C.C.), aprovada no Congresso dos deputados no passado dia 21 de Abril, levada adiante polo Governo do PSOE, com o apoio doutras forças políticas, para legalizar os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, outorgando-lhes todos os direitos inerentes à vinculaçom conjugal, é, em termos puramente técnicos, bem simples e singela. Basicamente, consistiu na modificaçom de muitos dos artigos do C.C., substituindo lá onde apareciam os termos "homem" e "mulher" por "cônjugue" ou "progenitor". O novo texto reformado, que o Governo considera que poderá beneficiar um número aproximado de quatro milhons de pessoas, concede os mesmos direitos em fiscalidade, heranças, pensons, adopçons por parte de casais, etc... aos até o de agora nom permitidos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. O texto acha-se em trámite parlamentar, tendo de passar ainda polo Senado, para voltar mais tarde novamente ao Congresso, mas todo indica que a reforma será finalmente aprovada sem grandes complicaçons, dada a maioria que o PSOE e os seus sócios tenhem na Cámara.
Nom é o Estado espanhol o único que pretende realizar reformas semelhantes. Ainda que nom é informaçom amplamente difundida, som vários os estados de todo o mundo onde há, ou se prevê que venha a haver, reformas semelhantes e mesmo algum onde o casamento homossexual já está legalizado, como é o caso do Canadá, que analisa umha lei federal para os legalizar. A Holanda e a Bélgica fôrom os primeiros estados a eliminar qualquer distinçom entre homossexual e heterossexual, eliminando todas as referências de género nas leis de matrimónio, e na Dinamarca as unions civis com os mesmo direitos que o matrimónio realizam-se desde 1989, e outros países da sua área figérom o mesmo na decada de 90.
Resulta especialmente chamativo que no Estado espanhol umha reforma destas características, que supom um "fito histórico" segundo as declaraçons de alguns dos membros do Governo e do partido que o sustenta, tenha provocado tam poucas análises e reflexons, especialmente por parte da esquerda, das esquerdas, entendendo estas no seu mais amplo e plural significado, ao tempo que provocou um dos maiores debates, umha das mais azedas polémicas, especialmente mediáticas, dos últimos anos. Procurando nas hemerotecas ou na Internet, podemos encontrar centenas, dúzias de centenass, de declaraçons, a favor ou contra, mas practicamente nengumha análise, nenguma reflexom sobre o tema. Assim, por exemplo, surpreende que por parte da esquerda, ou quando menos daqueles sectores da esquerda que nunca fôrom excessivamente partidários da instituiçom do matrimónio tal e qual até agora a conhecíamos (o casamento heterossexual), e que criticava tal instituiçom por ser um alicerce básico do sistema patriarcal e umha célula fundamental para a reproduçom do sistema capitalista, a partir dessa esquerda, digo, surpreende que nom existam praticamente análises, sobre o tema. E ainda mais surpreende que nom exista nengum tipo de reflexom sobre os motivos que levam o PSOE a promover umha tal reforma, enfrentando-se nom só à direita e ultradireita política e sociológica e à Igreja católica e mesmo algumhas outras confissons religiosas, mas também a umha parte do seu eleitorado e dos seus membros (como se pudo ver ante as posturas mantidas por destacados militantes do PSOE como Francisco Vasques). Serám essas as duas questons fundamentais que pretende tratar este artigo, escrito tendo em conta que esta vai ser um dos grandes "contributos", umha das "promessas cumpridas", um dos temas-estrela, que o PSOE, e especialmente ZP, podam apresentar no fim do seu mandato.
Pode ser a instituiçom do matrimónio umha ferramenta de transformaçom social?
Comecemos por afirmar que é umha questom de justiça social o reconhecimento de direitos a colectivos dicriminados. Todas aquelas acçons que conduzam para evitar ou acabar com discriminaçons que impossibilitam a igualdade (mesmo que seja umha igualdade só formal e nom real) entre as pessoas som sempre passos positivos que devem ser valorizados como avanços importantes. A legalizaçom, com todos os direitos e deveres, dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, fruto das luitas e campanhas dos movimentos de gais e lésbicas ao longo de várias décadas, nom fai mais que acabar com umha evidente injustiça, que nom permitia (com base em razons morais, religiosas ou ideológicas), que um amplo colectivo de pessoas pudesse gozar dos mesmo direitos que outras por motivos da sua escolha sexual. Até aí estamos de acordo.
Umha das razons que esgrimia, e ainda esgrime, a hierarquia da Igreja católica para se situar contra os casamentos entre pessoas do mesmo sexo é que vai ser umha iniciativa que vai "destruir o matrimónio tal e qual até o de agora o conhecíamos". Converte-se esta numha razom para quem é a favor desta iniciativa e ao mesmo tempo é contra a instituiçom do matrimónio, quando menos o matrimónio tal e qual até agora o conhecíamos. A situaçom, para nos explicarmos melhor, é semelhante à que se criou quando ainda existia o Serviço Militar Obrigatório no Estado espanhol, quando havia um amplo e forte movimento contra o mesmo, e as mulheres começavam a incorporar-se ao exército. Era positivo, era defendível, era revolucionário, que as mulheres tivessem que fazer também a mili, ou que se incorporassem ao exército? Era sem dúvida um reconhecimento dos direitos das mulheres, mas era um passo adiante?
Neste caso sucede o mesmo: porque o movimento das lésbicas e os gais (ou, quando menos, umha parte destacada do mesmo), tem tanto interesse em participar dumha instituiçom tam retrógrada, tam patriarcal, tam capitalista como o matrimónio? Nom teria sido muito melhor um movimento que questionasse essa instituiçom, de origem evidentemente religiosa, na procura dumha outra forma de relaçom social, muito mais livre, muito mais democrática, muito mais progressista? Evidentemente, nem só as pessoas homossexuais som as que deveriam ter criado esse debate, mas o conjunto das pessoas, organizaçons, colectivos e movimentos que nos definimos como contrárias ao mundo capitalista actual, o mundo realmente existente, e luitamos por um outro mundo possível. E pode que aí tenhamos a resposta.
Os e as homossexuais nom som, per se, transformadores. É umha evidência, mas muitas vezes as evidências som questons que há que deixar patentes porque se esquecem com facilidade. As organizaçons de gais e lésbicas que com mais decisom apoiárom e defendêrom publicamente a reforma do C.C., aquelas que nom tenhem reparos em mostar a sua proximidade com o PSOE, ou em menor medida com I.U. como sócio do anterior, nom som, nem muito menos, organizaçons transformadoras, mas puramente reformistas. Umhas declaraçons de Beatriz Gimeno , recém eleita, por segunda vez consecutiva, Presidenta da Federaçom Estatal de Gais, Lésbicas e Transexuais (Felgt), que agrupa 32 associaçons, resultam esclarecedoras. Perguntada sobre a anunciada manifestaçom que a ultradireita espanhola convoca para 18 de Julho em Madrid contra a reforma do C.C. e do casamento homossexual, a sua resposta é: "Nós respeitamos que se manifestem. Mas os direitos nom se ganham na rua, ganham-se no Parlamento". E ainda, mais adiante, afirma que "as associaçons (de gais e lésbicas) vamos ter que mudar a forma de actuar (...) Passamos dumha luita de trincheiras (...) a umha luita mais de gabinetes, projectos e programas; mais social e de colaboraçom com as instituiçons". Como tem acontecido noutras ocasions de governos social-democratas, a "institucionalizaçom" dos movimentos sociais, a sua integraçom na vida dos gabinetes e a sua desapariçom do espaço próprio dos mesmos, a rua, é um dos objectivos das políticas governamentais.
E é que, homossexual ou heterossexual, o casamento continua a ser umha instituiçom básica para perpetuar a actual ordem social. E isso nom vai mudar case quem casar. Umha outra cousa é que se adapte às mudanças sociais ou nom. Mas o que nom é é umha ferramenta para transfomar a sociedade. Antes ao contrário.
Resulta evidente que para o conjunto do movimento gai e lésbico, era muito difícil nom entrar na polémica suscitada por esta iniciativa do PSOE, tendo em conta as barbaridades que por boca de diferentes representantes da direita e da Igreja católica, fundamentalmente, apareciam na imprensa, pretendendo, e parcialmente conseguindo, criar um certo clima de confusom e crispaçom. Assim, por exemplo, José Luis Requero, relator da Comissom de Estudos e Informes do Conselho Geral do Poder Judicial (CGPJ), chegou argumentar que permitindo os matrimónios homosexuais o Estado se veria indefenso ante outras possibilidades que poderiam aparecer no futuro, como a petiçom de legalizaçom da poligamia por parte da comunidade mussulmana, ou dos casamentos entre irmaos, ou da uniom entre pessoas e animais; posteriormente a tal comissom aprovou um "estudo jurídico" que tratava o tema nos mesmo termos, com os votos dos vogais propostos polo PP. Nos mesmos dias, Fraga Iribarne, ex-ministro franquista e actual presidente da Junta da Galiza, afirmava que ser gai é "umha anomalia dos cromossomas", considerando "um erro" reinvindicar o orgulho gai . Declaraçon em sintonia com as realizadas por Jesús Catalá, bispo de Alcalá, que defendeu que "ser homossexual é umha anormalidade psicológica" . Enquanto isso, o recém eleito Papa da Igreja católica, Ratzinger, fazendo gala das doutrinas mais rançosas e decadentes, acusava Zapatero e o seu governo de pretender "destruir a família", e membros da cúria definiam a reforma do C.C. como "umha vergonha", "um cancro", umha lei "injusta e prejudicial", "mostra dumha Europa em decadência", e realizavam apelos ao funcionariado para exercer umha hipotética obejcçom de consciência para impossibilitar de facto que se podam levar a efeito as reformas.
Fôrom muitas as declaraçons da ultradireita contra os direitos das pessoas homossexuais, e nom é possível, nem recomendável, reproduzi-las todas. Mas acabemos com as de Lluís Fernando Caldentey, presidente da Cámara de Pontons (Barcelona) polo Partido Popular, que chegou a afirmar que "um gai é umha pessoa tarada, que nasce com umha deformaçom física ou psíquica".
Com toda a probabilidade, após toda esta polémica, o que sucederá é que, logo que deixe de ser notícia e merecedora de manchetes, a discriminaçom por motivos de escolha sexual, que seguirá a existir, fique silenciada nos meios. Porque as campanhas de propaganda (e a ultradireita tomou este tema como umha campanha de propaganda) tenhem sempre data de caducidade. Nom pensava o PSOE que quem lhe ia fazer a campanha publicitária sobre as suas "promessas cumpridas", e grátis, eram o PP e a Igreja católica. Porque o PSOE também tomou este tema da mesma forma: como umha campanha de propaganda.
Umha mostra de mudança de talante para que todo continue na mesma
E é que a reforma do C.C. que vai permitir o casamento homossexual nom é mais do que umha nova mostra do mudança de talante. Umha nova mostra da política de ZP e o seu governo: modificaçons epidérmicas, política de salom de beleza, que permite vender a imagem dum governo progressista, comprometido com os movimentos sociais e com os colectivos discriminados, e sem custos de nengum tipo, enquanto na camada profunda da pele, na derme, onde estám os vasos sanguíneos e os nervos, todo continua exactamente na mesma. Umha grande campanha de publicidade para vender, num novo invólucro e com umha nova marca, o mesmo produto que já vendeu o PP, e antes o PSOE nos seus governos felipistas.
Na política económica, na política laboral, na política internacional, na questom nacional, poucas mudanças, ou nengumha. O mesmo ZP que nom tem problemas em fotografar-se com os sectores mais "yuppies" e burgueses do movimento gai é o mesmo que declara que nom tem intençom de rebaixar o horário laboral; antes o contrário: há que trabalhar mais. O PSOE, nesta nova etapa de governo, sabe que precisa de acumular e consolidar os votos progressistas e juvenis que lhe permitírom ganhar as eleiçons de Março de 2004, para poder chegar às próximas eleiçons com um apoio que lhe garanta a consecuçom dumha maioria absoluta e desfazer-se dos seus actuais, e incómodos, sócios de governo (ERC, IU,...). Para tal, deve combinar as políticas neoliberais que vem aplicando com campanhas de publicidade e cortinas de fumo que lhe permitam consolidar a sua imagem de força distinta, diferente, mesmo contrária, às políticas do PP. A reforma do C.C. para permitir o casamento homossexual é o melhor exponente disto.