Já que o Joseph, alma deste re/canto da leitura, me anima a pôr algo sobre a recente visita do Ondjaki, farei caso por reverência àquele e darei apenas um apontamento por amizade deste ?e por respeito ao pessoal todo, que anda na aventura de ler livros. Para variar, farei apenas glosas por fora deles, e porque às vezes também daí se instiga o gosto por tal.
Digo logo, e em primeiro lugar, que a visita deste rapaz ?que já vai sendo menos? nem é a primeira, porque já nos visitou quase em menino, nem será de certeza a última, porque estou seguro que continuará a vir quando velho. O Ndalu de Almeida (esse o seu nome real) tomou-nos carinho sobre o terreno com 26 anos, e eis no recorte da foto de cima a sua cara assombrada. Tenho outras ainda mais simpáticas e menos urbanas, dessa altura e de muitas outras durante anos em que mutuamente nos frequentamos, mas essa primeira altura foi especialmente ternurenta, e o do carinho (recíproco) é algo mais que uma metáfora: na época ele já tinha editado nada menos que os livros de poemas Actu Sanguíneu e Há Prendisajens com o Xão, o romance Bom dia Camaradas, os contos Momentos de Aqui, e a novela O Assobiador, e foi esta última que serviu de desculpa para um lançamento improvisado na Palavra Perduda, e foi nessa noite de discoteca compostelana que o carinho deixou de ser metáfora ?no que respeita ao rapaz e às moças que tinham estado na livraria! Lógico que as alunas das Letras se entusiasmassem com o jovem exótico com cara de menino, um recém licenciado em Sociologia que até tinha feito teatro amador, que já se tinha interessado por pintura, mas que era já autor de vários livros acima de dignos. E O Assobiador continua a ser, quanto a mim, uma das pérolas raras.
Nesse mesmo ano da sua primeira visita inscreveu-se no Mestrado em Cinema da Columbia University, ainda que pouco resistiu em New York. O do cinema levou o jovem a participar posteriormente na escrita da série angolana Sede de Viver, em documentários como Oxalá cresçam Pitangas, ou a trabalhar como assistente do Tabajara Ruas, e filmar quarenta dias no Rio Grande do Sul. Acabou por fixar-se no Brasil, sim, e hoje tem até nome com eco amplo naqueles lados, mas passou na Galiza várias vezes, chegou a forçar os pais em trânsito por Portugal a vir aqui, participou no Festival de Poesia do Condado, falou-nos no JL e, claro, tivemos cumplicidades de última fila, noitada em todas as Correntes d'Escritas em que nos encontramos, e na Bahia, e no Porto, conspirantes de projetos mais prolongados ?que ainda um dia podem e até deviam acontecer.
Em Julho de 2005 partilhamos em Compostela vários dias de cozinha intensiva acompanhados por Ruffato, Adriana Lisboa, Possidónio, Peixoto e Luís Cardoso, Cadaval a reforçar o lado galego. O menino que tinha nascido 2 anos depois da independência, que cresceu nessa Angola com a proximidade das últimas guerras, que foi estudar em Lisboa com 16 anos, que seguiu aí a universidade, que aí tomou contato com a cultura portuguesa, certo, mas também ?e surpreendido na descoberta? com outras comunidades africanas, como a de caboverdianos, santomenses, moçambicanos, acrescentou à sua consciência a descoberta e a amizade da galega para o diálogo da língua portuguesa, desde o primeiro dia, desde aquele primeiro encontro na Póvoa, desde aquela primeira visita a esta terra que a foto de cima comemora. E já nunca largou.
Do texto que nos deixou no mencionado Julho de 2005 (e recolhe as Actas do VIII Congresso Internacional da Associação Internacional de Lusitanistas, v. II, pp. 1905-1907), chamado "NA PLURALIDADE DAS LÍNGUAS", vou deixar-vos um par de breves recortes para fechar:
"Ao longo do tempo, das leituras e das escritas, vai-se descobrindo a importância da alteração dos sentidos para buscar o modo propício de chegar ao que se quer dizer. Experimentando outros ecos do mesmo rio, buscando águas que já choveram e outras que estão por chegar. É nessa permissividade de conteúdos literários que o escritor cria e ganha uma alternância ao hábito dos sentidos. Julgo que não há criatividade sem alternância de sentires e a permissão dessa alternância.
(...)
Oxalá saibamos manter, por muitas mais gerações, o essencial destas culturas plurais, acompanhando a modernidade sem nunca ferir a tradição; oxalá saibamos trilhar, como os nossos mais-velhos, a senda de contornar o tempo, fintando os anos em sorriso de aceitação, mas sobretudo, manejando as palavras, as correntes e os desvios, para celebrar este quintal que, dividindo, nos une: a Língua Portuguesa, com as suas árvores, os seus frutos e os seus desertos promissores.
Oxalá."
O Ondjaki é dos que a nossa voz entendem, sim. E como ele há mais nomes, alguns já mencionados, outros ainda por vir, alguns mais militantes na causa, outros menos ainda, que mais dá. Oxalá saibamos manter, com a ajuda dos livros desses nomes, os nossos próprios nomes, já que a nós especialmente cabe o peso de eles continuarem inteligíveis ?nomes e livros? na nossa língua. Oxalá.
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