Quando apenas faltam quatro dias para o 25 de Maio, Dia do Orgulho Lusista e Reintegrata e Dia da Toalha, iniciamos a publicaçom por entregas do magnífico texto que, a modo de manifesto, escreveu para nós a ‘madrinha’ do evento, Teresa Moure, e que ela própria defenderá publicamente (no Largo de Massarelos e no C.S. O Pichel, Compostela) na jornada do 25-M.
Quatro imagens autênticas e uma só revolta interior
Manifesto para a Festa da Toalha 2013
Teresa Moure
Primeira imagem: a casa natalícia
Em Os espelhos do tempo Vítor Vaqueiro decide fotografar a que ele chama a casa natal do Eu para encher de simbolismo poético essa imagem aparentemente inócua. Como fizeram antes tant@s artistas, o nosso autor deseja projetar-nos no passado, nas janelas brancas, nas persianas baixas, na pedra da fachada, com a intenção de que a sua vida faça parte de nós. Leio Vítor Vaqueiro e invade-me uma vaga de morrinha que reclama essa casa, a de ele, embora nunca a visse. A leitura é o território do paralelismo. Penso por um momento em fotografar, também eu, a minha casa natalícia e percebo, com surpresa, que não existe. Não existiu nunca. Sou dessas pessoas que nasceram num hospital, entre a assepsia e a frialdade dos ninhos artificiais. Talvez por isso, esteja pouco conforme com o mundo, que sempre me pareceu um lugar hostil. Não há em nenhum lugar do planeta esse cenário realista que possa lembrar o meu nascimento porque, num acaso que hoje me serve de motivo, aquela clínica fechou anos atrás, quando se reformou o obstetra que a levava. Para incrementar a ironia, o edifício acolhe hoje uma clínica veterinária, algo que traz o riso para a minha cara. Adoro essa ironia. Se quisesse fotografar o lugar onde nasci, a imagem luziria o rótulo de “clínica veterinária” e eu estaria a reconhecer a minha natureza animal, de que, para dizer tudo, estou bem orgulhosa. − Prefiro ser animal que vegetal, para já não falar em mineral −. Instalo-me no conceito mesmo de mudança. Nada há estável, nada certo. A casa natal pode ser varrida do mapa, pode não ter sido nunca uma casa. Teimo: nada há de estável neste mundo, nada seguro. Nem sequer a própria biografia. O poder tenta capturar-nos dentro dumas margens às que chamam realidade. Nem sabem o que querem dizer com isso. Algumas pessoas não conhecem as suas mães biológicas, só as adotivas. Chamá-las-iam, por acaso, mães artificiais? Aposto que não. Nada há mais natural que a morte e por certo que tentamos evitá-la. Nada há mais natural que a enfermidade, que a dor profunda da existência… E nada mais lógico do que procurarmos escapar dessas naturalidades. Faço hoje aqui, nesta Festa da Toalha, um canto à artificialidade. A artificialidade permite construir-se contra as eventualidades, contra o azar. Nem os bilhetes de identidade com que o estado pretende capturar dados certos som completamente reais. Alguns mudam de estado civil, mesmo várias vezes na vida. Algumas mudam de lugar de residência, de trabalho. Alguns mudam de sexo. Nada é estável nem permanente. As mudanças são o melhor indicativo de estarmos viv@s. Contra a violência do poder, ainda bem que podemos erguer a rebeldia de inventarmos outras realidades.
A crítica mais frequente contra o reintegracionismo ataca a suposta artificialidade de seguirmos a convenção histórica de representação da língua seguida ao sul. Porém, qualquer padrão contém um grau de artificialidade; doutro jeito cada falante representaria a sua própria língua e a exibição de diversidades chegaria a rachar com as pautas para nos entendermos. Supormos que é natural a língua que posso gravar num trabalho de campo apanhando palavras aldeia por aldeia, ainda que esses fragmentos de discurso estejam abafados de espanholismos, e que, no entanto, é artificial adotar um ç, seria como dizer que só está vivo quem puder fotografar a sua casa natal. Para muitas gerações de galegos, a língua não chegou naturalmente, diluída no leite materno, empapando o ar com os nomes das partes do carro de bois. Tivemos que adquiri-la num processo consciente, motivado e subversivo. Não era a família em que nascemos; era uma dessas outras famílias que habitamos ao longo da vida: uma família antipatriarcal, alternativa, dinâmica, um grupo a que aderimos por escolha livre e que, portanto, sabe ceder no debate, negociar. Se a maioria dos indivíduos que falam a minha língua no mundo dizem “-ção”, aceito escrevê-lo assim, mesmo se eu digo “-çom”, ou algo semelhante. A casa natal trocou de aspeto, mas isso não me questiona. Distingo entre o superficial e o acessório, entre o que não vou negociar − a minha instalação nesta língua de resistentes que ainda não nos deram tirado − e o que é pura vestimenta: os signos que emprego para representá-la.
[Continuará…]
A mim, em troques, custa-me distinguir “entre o superficial e o acessório” 😉 , e tambem “não vou negociar nem tirar a mais resistente e pura vestimenta ;-).