Continuamos com a publicaçom por entregas do magnífico texto que, a modo de manifesto, escreveu para nós a ‘madrinha’ do DdoOLeR’13, Teresa Moure (e que ela própria, lembramos, defenderá publicamente nos compostelanos Largo de Massarelos e C.S. O Pichel neste vindouro sábado). Faltam três dias para o 25 de Maio, Dia do Orgulho Lusista e Reintegrata e Dia da Toalha.
Segunda imagem: Para que serve uma faca?
Ao defendermos um galego extenso, um galego internacional, um dos argumentos mais recorrentes alude à sua utilidade prática. O galego, uma língua românica originária do comprido território da Gallaecia, perdeu o seu prestígio ao norte do Minho, onde teve que submeter-se à doma e castração dos nobres de Castela. Porém, continuou sendo língua de corte e de cultura em Portugal e, daí, através dum processo de colonização do que não podemos deixar de sentir vergonha, instalou-se em territórios dos cinco continentes. Visto que o povo galego sente uma baixa estima pelo seu, visto que tantas pessoas insistem ainda em que a nossa língua não tem valor para andar pelo mundo, entre nós muitas vozes se ergueram defendendo as vantagens econômicas que representa para o povo galego falar uma das línguas mais difundidas pelo planeta. Confesso não gostar muito desse argumento que me pode colocar, perigosamente, da parte dos processos de colonização, se não o exprimirmos a jeito. Precisemos. Bem está convencer os ignorantes de que a língua das Cantigas de amigo, a de Pessoa, a de Clarice Lispector, a de Mia Couto, a de Séchu Sende, para pôr algum exemplo, não é um dialeto de andar pela casa; de que a sua delicadeza, a sua profundidade, a sua agudeza pode permitir-nos expressar com toda a complexidade qualquer axioma matemático, qualquer conceito filosófico, qualquer novidade da tecnologia. Obviamente. Mas não há dialetos de andar pela casa. Qualquer língua duma pequena tribo do mundo contém todos os recursos para chegar às mais recônditas profundidades do intelecto. Não há, na verdade, línguas piores e melhores.
Com muita frequência, os livros, os manuais e enciclopédias que estudamos teimam em definirem as línguas numa óptica utilitarista como ferramentas para a comunicação. Essa definição é simplificadora. Aliás, está a salientar a dimensão instrumental das línguas, o aspecto em que estas são menos perigosas para o poder; de aí a sua popularidade. Com efeito, é através das línguas que cada dia conseguimos comunicar-nos. Porém, também é certo que essa “comunicação” nem se faz por via exclusivamente linguística nem resulta tão eficiente como devera. Case todas as pessoas sofrem conflitos linguísticos que afetam as suas relações pessoais: nos nossos discursos abundam os maus entendidos, a ambiguidade e a falta de exatidão. Se as línguas fossem o principal meio de comunicação das pessoas, não se explicaria por que somos mais desajeitad@s por telefone que face a face. Ao mesmo tempo, cada dia muitas pessoas usam, para se comunicarem com outros seres humanos, as artes, os gestos, o afeto ou o sexo. Em absoluto consideram a expressão por estas vias não linguísticas como algo secundário ou redundante; ao contrário, com frequência aludimos à experiência contrária e asseguramos que “uma imagem vale mais do que mil palavras” ou que não dispomos das palavras justas para descrevermos uma determinada situação. Se as línguas fossem meios de comunicação efetivos e mais nada, a matemática, a química ou a lógica não precisariam das suas linguagens especializadas. Aventurarmos que a linguagem humana é, entre outras coisas, o principal sistema de comunicação da espécie pode ser válido em tanto que primeira aproximação; que esta função defina a linguagem até esgotá-la é manipulador. Também uma faca vale para abrir garrafas de cerveja quando não tivermos nada melhor perto e ninguém define a faca como um instrumento para abrir cervejas. Com rigor nem sequer uma função mais definitória do uso habitual das facas serviria para definir a faca. Uso o galego internacional não porque seja útil para abrir muitas garrafas; uso-o porque é uma faca ótima para ameaçar o pensamento único.
Aceitemos uma hipótese ligeiramente variada. Suponhamos que o galego só se falasse agora na Galiza e numa ilha do Pacífico, independente a nível político e com uma cultura desenvolvida integramente em galego porque Portugal nunca levantara um amplo império colonial. Neste suposto fictício, não sendo o número de falantes nem as possibilidades de investimento econômico fatores a termos em conta, igualmente deveríamos assumir a grafia que a língua tivesse nessa ilha onde foi língua oficial, e não desprestigiada pelo poder. Porque o objetivo principal da nossa revolta seria alterar um modelo espanholizante, que as e os escritores do XIX adotaram porque não conheciam ainda a história interna da língua e que outras autoridades mais recentes no tempo assumiram porque permitia incorporá-la ao ensino, bem apegadinha ao espanhol. O movimento reintegracionista, acho eu, é um movimento pela dignificação, pela negação do assimilacionismo ao espanhol, um movimento vinculado à independência política; não apenas ao pragmatismo do mundo-tal-qual-é, o mundo do capitalismo e a competitividade. Quero lembrar neste ponto que não nos dedicamos às questões importantes, às artes, nem aos cuidados por utilidade. Cultivamos aquilo que nos faz especificamente seres humanos por algo que não tem a ver com pragmatismo nenhum, mas com os afetos, com o sentido da própria identidade. Não tiramos com as nossas lembranças, com as nossas experiências, com os nossos saberes. Não tiramos com as pessoas a quem amamos quando enfermam. E, se não fazemos tal, não será porque seja útil arrastar um passado ou porque seja cômodo atender alguém deitado numa cama com as ilusões partidas e o corpo irremediavelmente atado ao sofrimento, pedindo às suas horas comida e atenções. Não nos move a utilidade. Move-nos o amor. A nossa faca serve para rendermos tributo à história, para defendermos a visão particular do mundo que se deu elaborado desde o galego, para ameaçarmos a tranquilidade do poder. A nossa faca tem algo mais importante que a utilidade; incorpora uma lógica alternativa.
O meu comentário ao (2/4) é uma inútil questião: “através dum processo de colonização do que não podemos deixar de sentir vergonha, instalou-se (o galego) em territórios” alem Douro? Naturalmente 😉 a resposta é, sim. http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_galega