Syra Alonso nasceu na Corunha em 1899, e a sua vida vai parelha à do pintor Francisco Miguel. Na cidade som amigos de Álvaro Zevreiro. O casal viaja por Paris, Cuba e México, conhecendo as pessoas mais importantes da arte do momento: Picasso, Georges Braque, Diego Rivera, Siqueiros, Alejo Carpentier (do que F. Miguel fai um famoso retrato) e até o cineasta Serguei Eisenstein. Syra é a musa e modelo dos quadros de Miguel, e pensa-se que é a primeira mulher em possar despida na Galiza. Em 1933 volta à Galiza, animados pola efervescência política e cultural da República, morando em Oleiros, na ?Casa da Felicidade?. Mas asinha mudam as tornas, quando, após ser detido já umha vez, a guarda civil e os falangistas assassinam a Francisco Miguel na paróquia de Bértoa, em Carvalho, amputando-lhe as mãos de artista. Syra cai numha grande depressom, e antes de exilar-se a México refugia-se umha temporada na nossa comarca, em Tordóia, onde começa a escrever os seus diários, crónica da barbárie fascista, mas também um interessante documento etnográfico sobre a Tordóia de 1936. Transcrevemos aqui os primeiros capítulos do Diário, que A Nosa Terra publicou no ano 2000 (Colección Mulleres).
DIÁRIO DE TORDÓIA
O velho agoniza e o novo, quanto tarda em chegar!
Syra Alonso
A Emílio de Migue Nieto, desaparecido nas frontes do Sul; ao xeneral Caridade Pita, fusilado em Ferrol a madurgada do sete de novembro de 1936 no Castelo de Sam Filipe.
A vós, heróis galegos, dedico-vos estas páginas. Som minhas e som vossas; é a minha dor e a de todas as mulheres de Espanha. A vós heróis galegos com todo o meu coraçom!
PRIMEIRA PARTE
I
Para chegar a Tordóia tivem que realizar umha pesada viagem em camiom. Na Tablilha um labrego alugou-me um cavalo no que tomei o caminho até Tordóia. Fôrom, lembro-o bem, sete quilómetros por umha estrada branca e poirenta, aqui e acolá eucaliptos e castinheiros, polas leiras de milho voavam perdizes e rulas. A úmida e sempre verde Galiza está seca, rareia a erva para manter o gado e, pola falta de chuva, estragárom-se as colheitas neste ano de 1936.
Chego a Tordóia quando no céu começam a sair as primeiras estrelas. Alojo-me numha casa de humildes labregos. Na cozinha há umha mulher que está a fazer umha bola de milho com toucinho; o gato que está enriba da artesa pom-se a rosmar e salta até a lareira arrimando-se às áscuas. A mulher ao ver-me ergue-se. É alta e tem o rosto ovalado e moreno, os olhos verdes e umha mirada que ilumina a sua cara enmarcada por umhas grosas trenças de cabelo louro. Deixa-se ouvir a sua voz com o acento da terra: ?Sente-se senhoritinha? e com um amplo mandil limpa o talho que me oferece. Avivece o lme com umhas palhas e a esmorecida chama ressuscita. Entre as achas pom o pote. As chamas, já crescidas, sobem até a gramalheira que terma do pote e todo o que há na cozinha resplandece. A boa mulher escuita-me com muito interesse, regala os olhos e as suas palavras acadam nos seus beiços um sentido semelhante a umha oraçom.
?Pobrinha! Esteja caladinha, nom fale. Morrem muitos. Malpocados! Sem fazerem mal a ninguém! Esteja caladinha, nom fale. Eles também morrem. Assim Deus o queira! Amém! E a sua mão fai o sinal da cruz.
Anima-se o lume com as achas secas e joga com as cousas agrandando-as nas paredes. Estrala um doce murmúrio de suaves sons. Um cativo com pencas e fazulas deixa enriba da mesa um jerro de leite; mira-me e sorri com um sorriso amplo e pavero. O recendo do feo fresco enche a cozinha, num curruncho treme a chama de um candil, o grande relógio deixa ouvir o seu forte tictac. É hora de descansar e a mulher despide-se com um ?boas noites lhe dê Deus, minha senhora?.
Estou no meu quarto. As paredes e as portas som de madeira sem pintar, há umha cama grande coberta com umha colcha verde floreada com diminutas margaridas. Diante das minhas janelas erguem-se os carvalhos como sombras, no céu brilha a lua cor-de-lume e as nuvens juntam-se pequeninhas e brancas, como umha empedrada- Um quinqué de petróleo ilumina a mesa. Estou derreada mas nom podo durmir. Deito-me na cama, intento afastar os tristes pensamentos que me possuem, mas é inútil: afundo-me na mais desesperante dor.
Oito dias há que vivo em Tordóia. Dediquei-nos a ver a aldeia e a observar a mocidade aldeã. O casino destes humildes labregos é a taberna. Diante duns copos de canha do Ribeiro conversam sobre a guerra, o cura, o cacique..., enquanto o relógio vai marcando as horas trágicas que nos toca viver. Estas tendas das aldeias som como abarrotes, nelas há umha grande variedade de artigos: socos, nobelos de corda, cebolas, chouriços, grandes barris de sardinhas salgadas e de vinho, caixas de pemento e de bolachas Maria.
Quando entrava na tenda era mais por curiosidade que por mercar. Havia no fundo umha mesa grande e, diante dela, uns vinte labregos. Ali, longe de toda comunicaçom, raras notícias tinham do que acontecia em Espanha. A voz do mais velho ecoava como a dum profeta nas quatro paredes da tenda:
?O Nosso Senhor di amade-vos todinhos e pelejar-nos imos contra irmãos, trabalhar e nom trabalhamos, nom fazemos outra cousa que ferrear. Se o Nosso Senhor baixasse a esta terrinha diria o que dixo o poeta Curros, que o Senhor assomou-se ao céu e, mirando para baixo, berrou: ?Se eu figem este mundo que o demo me leve!?.
A taberneira, de meixelas encarnadas e floreado pano, sai à porta um pouco assustada. Passados uns segundos volve ao expositor tranquila e sorrindo. Por sorte, nesta aldeia nom há tricórnios de hule nem blusas com frechas.
A escola de Tordóia leva-se mal com todas as práticas higiénicas: as paredes estám descascadas, os bancos e as mesas rompidos e respira-se tristeza, miséria e umidade. Um fato de nenos esfarrapados canta um cantar apático e desganado que começa com o hino fascista Cara al sol e remata com a Letanía. O mestre neste ambiente trabalha sem amor e os alunos só desejam que os deixem em paz e que soe a campá da saída.
Agora vejo a minha velha Galiza, compreendo que a amo mas sei que falta algo nela. Nom é doado falar de certas cousas. Nom é doado, é bem certo, mas, ao mesmo tempo, que afám sente um de dizer a verdade sem paixons nem fanatismos! Tordóia é umha aldeia que está entre Ordes e Santiago de Compostela, rodeada de grandes montanhas, de rios e de formosos bosques de castinheiros e carvalhos. Há em Tordóia umha grande devoçom polo Apóstolo: nas casas vê-se, iluminada por umha lámpada de óleo, a imagem de Santiago no seu cavalo branco brandindo a espada contra os mouros. O lavrador galego é devoto, mas os da montanha som pouco generosos; os da costa som comunicativos, francos e repartem o seu pam com gosto.
Tordóia tem os mesmos problemas que outras aldeias. A terra é do amo, para ele trabalha-se e se a colheita se perde, que vai comer o pobre lavrador? Longa de havia de fazer esta página se eu fosse contar nela o fundo problema do labrego na Galiza. Já a nossa Rosalia contou em formosíssimos versos a vida das mulheres, dos homens que emigram: as viudas d´os vivos. E quando as caravanas de jornaleiros saiam à seitura em Castela ela escreveu: Castellanos de Castilla, tratade ben os galegos. Cando vam, vam como rosas, cando ven, ven como negros.
Dura, mui dura é a vida numha terra de Espanha onde a artesania é valiosa: jeitosos encaixes de Camarinhas, azibeches de Compostela, panos de lã estampados com flores, colares de cunchas, monecos vestidos com o traje galego, potes, hórreos, gaitas minúsculas, barro policromado... Tudo isto sai de humildes obreiros.
Quantas horas botei admirando os teares de Tordóia! Com que primor aquelas mulheres tecem o linho até convertê-lo em teias de formosíssima calidade!
Sentia umha paz e um doce acougo quando entrava na igreja de Tordóia, tam limpa, tam clara, com as paredes brancas e os altares adornados com flores e cobertos com manteis de encaixe. Arredor da igreja está o cemitério, com profussom de fiúncho que perfuma o ar. As tumas estám adornadas com erva fresca.
O sino toca a morto. Um grupo de mulheres cobertas com mantelos de veludo negro entra na igreja. O sino segue a soar lentamente, tim... tam, tam...
Este sol de ouro de setembro que me alouminha, que bica a igreja e as tumbas, enche-me de infinita tristeza. Um doce e místico silêncio envolve a aldeia. Nos meus ouvidos soa a voz do sino que segue tocando a morto, tam... tam.
II
Começo hoje, 12 de setembro, neste lugar de Tordóia, outro capítulo do livro que lhe dedico a Miguel, e nom há nada mais triste para mim que estas evocaçons. Estou sentada diante da mesa do meu quarto; através da janela podo ver umha formosa paisagem, um céu dourado polo sol-pôr que ilumina os carvalhos que bordeiam o rio; rio transparente, puro, limpo que convida a sonha, a lembrar...
Ah, Francisco Miguel! Tinha tantas esperanças na tua arte, na nossa vida... Tudo se esvaeceu como um sonho rosado. Neste recuncho tam acugulado de belezas tortura-me mais a lembrança da tua ausência e o presentimento das silveiras que se enleiam ainda nos meus pés denantes de chegar ao fim do meu caminho. Tudo é soidade e tristura para mim, Paco Miguel!
[...]
Escrito ?s 18:24:37 nas castegorias: MEMÓRIA, Documentos
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