"Não quero parecer um pastor com a sua Bíblia marxista, mas quero ler uma passagem de O Capital: o verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital; é o fato de que, nela, são o capital e a sua própria valorização que constituem o ponto de partida e a meta, o motivo e o fim da produção. O meio empregado - desenvolvimento incondicional das forças sociais produtivas - choca constantemente com o fim perseguido, que é um fim limitado: a valorização do capital existente". Leia a íntegra da palestra do economista francês François Chesnais feita em setembro, em Buenos Aires.
François Chesnais* - Esquerda.Net
Nesta apresentação feita em 18 de Setembro em Buenos Aires, o economista marxista francês François Chesnais expõe a forma como o capitalismo, na sua longa fase de expansão, tentou superar os seus limites imanentes. E como todas essas tentativas contribuíram para criar agora uma crise muito maior. Comparável à de 1929, mas que ocorre num contexto totalmente novo.
A tese que vou apresentar defende que no ano passado produziu-se uma verdadeira ruptura, que deixa para trás uma longa fase de expansão da economia capitalista mundial; e que essa ruptura marca o início de um processo de crise com características que são comparáveis à crise de 1929, ainda que venha a desenvolver-se num contexto muito diferente.
A primeira coisa que é preciso recordar é que a crise de 1929 se desenvolveu como um processo: um processo que começou em 1929, mas cujo ponto culminante se deu bastante depois, em 1933, e que logo abriu caminho a uma longa fase de recessão. Digo isto para sublinhar que, na minha opinião, estamos a viver as primeiras etapas, mas realmente as primeiras, primeiríssimas etapas de um processo dessa amplitude e dessa temporalidade. E que o que nestes dias está acontecendo e tem como cenário os mercados financeiros de Nova York, de Londres e de outros grandes centros bolsistas, é somente um aspecto - e talvez não seja o aspecto mais importante - do que se deve interpretar como um processo histórico.
Estamos diante de um desses momentos em que a crise vem exprimir os limites históricos do sistema capitalista. Não se trata de alguma versão da teoria da "crise final" do capitalismo, ou algo do estilo. Do que sim se trata, na minha opinião, é de entender que estamos confrontados com uma situação em que se exprimem estes limites históricos da produção capitalista. Não quero parecer um pastor com a sua Bíblia marxista, mas quero ler-vos uma passagem de O Capital:
"O verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital; é o fato de que, nela, são o capital e a sua própria valorização que constituem o ponto de partida e a meta, o motivo e o fim da produção; o fato de que aqui a produção é só produção para o capital e, inversamente, não são os meios de produção simples meios para ampliar cada vez mais a estrutura do processo de vida da sociedade dos produtores. Daí que os limites dentro dos quais tem de mover-se a conservação e a valorização do valor-capital, a qual descansa na expropriação e na depauperção das grandes massas de produtores, choquem constantemente com os métodos de produção que o capital se vê obrigado a empregar para conseguir os seus fins e que tendem para o aumento ilimitado da produção, para a produção pela própria produção, para o desenvolvimento incondicional das forças produtivas do trabalho. O meio empregado - desenvolvimento incondicional das forças sociais produtivas - choca constantemente com o fim perseguido, que é um fim limitado: a valorização do capital existente. Por conseguinte, se o regime capitalista de produção constitui um meio histórico para desenvolver a capacidade produtiva material e criar o mercado mundial correspondente, envolve ao mesmo tempo uma contradição constante entre esta missão histórica e as condições sociais de produção próprias deste regime. (1)
Bom, certamente que há algumas palavras que hoje já não utilizamos, como "missão histórica"... Mas creio que o que vamos ver nos próximos anos vai dar-se precisamente na base de já ter sido criado em toda a sua plenitude esse mercado mundial intuído por Marx. Quer dizer, temos um mercado e uma situação mundial diferentes da de 1929, porque nessa altura países como a China e a Índia eram ainda semi-coloniais, enquanto que agora já não têm esse caráter; são grandes países que, mais além de terem um caráter combinado que requer uma análise cuidadosa, são agora participantes de pleno direito dentro de uma economia mundial única, uma economia mundial unificada num grau desconhecido até esta etapa da história. A citação pode ajudar-nos a entender o momento atual, e a crise que se iniciou precisamente neste marco de um só mundo.
Um novo tipo de crise
Na minha opinião, nesta nova etapa, a crise vai desenvolver-se de tal modo que as primeiras e realmente brutais manifestações da crise climática mundial vão combinar-se com a crise do capital enquanto tal. Entramos numa fase em que se coloca realmente uma crise da humanidade, dentro de complexas relações nas quais se incluem também os acontecimentos bélicos, mas o mais importante é que, mesmo excluindo a explosão de uma guerra de grande amplitude que, no presente momento, só podia ser uma guerra atómica, estamos confrontados com um novo tipo de crise, com uma combinação desta crise econômica, que começou, com uma situação na qual a natureza, tratada sem a menor contemplação e atacada pelo homem no marco do capitalismo, reage agora de forma brutal. Isto é uma coisa quase excluída das nossas discussões, mas que vai impor-se como um fato central.
Por exemplo, muito recentemente, lendo o trabalho de um sociólogo francês, fiquei a saber que os glaciares andinos dos quais flui a água com que se abastecem La Paz e El Alto estão esgotados em mais de 80%, e estima-se que dentro de 15 anos La Paz e El Alto não vão ter água... e, no entanto, isto é algo que nunca foi tratado, nunca se discutiu um fato de tamanha magnitude que pode fazer com que a luta de classes na Bolívia, tal como a conhecemos, mude substancialmente - por exemplo fazendo com que a tal controversa mudança da capital para Sucre se imponha como uma coisa "natural", porque acabou a água em La Paz.
Estamos entrando num período desse tipo e o problema é que quase não se fala disso, enquanto que nos ambientes revolucionários continuam a discutir-se coisas que neste momento são minúcias, questões completamente mesquinhas em comparação com os desafios que temos pela frente.
Limites imanentes do capitalismo
Para continuar com a questão dos limites do capitalismo, quero chamar a atenção para uma citação de Marx, imediatamente anterior à já citada: "A produção capitalista aspira constantemente a superar estes limites imanentes a ela, mas só pode superá-los recorrendo a meios que voltam a levantar diante dela estes mesmo limites, e ainda com mais força". (2) Esta indicação introduz-nos a análise e a discussão dos meios a que se recorreu, durante os últimos 30 anos, para superar os limites imanentes do capital.
Esses meios foram, em primeiro lugar, todo o processo de liberalização das finanças, do comércio e do investimento, todo o processo de destruição das relações políticas surgidas na raíz da crise de 29 e dos anos 30, depois da Segunda Guerra Mundial e das guerras de libertação nacional... Todas essas relações, que exprimiam o domínio do capital mas representavam ao mesmo tempo formas de controle parcial do mesmo capital, foram destroçadas e, por algum tempo, pareceu ao capital que com isto ficavam superados os limites postos à sua atuação.
A segunda forma que se escolheu para superar esses limites imanentes do capital foi recorrer, numa escala sem precedentes, à criação de capital fictício e de meios de crédito para ampliar uma procura insuficiente no centro do sistema.
E a terceira forma, a mais importante historicamente para o capital, foi a reincorporação, enquanto elementos plenos do sistema capitalista mundial, da União Soviética e seus "satélites", e da China.
Só no marco das resultantes destes três processos é possível captar a amplitude e a novidade da crise que se inicia.
Liberalização, mercado mundial, competição... Comecemos por nos interrogar sobre o que significou a liberalização e a desregulação levadas a cabo à escala mundial, com a incorporação do antigo "campo" soviético e a incorporação e a modificação das relações de produção na China... O processo de liberalização e desregulação significou o desmantelamento dos poucos elementos reguladores que se tinham construído no marco internacional ao sair da Segunda Guerra Mundial, para entrar num capitalismo totalmente desregulamentado. E não só desregulamentado, como também um capitalismo que criou realmente o mercado mundial no pleno sentido do termo, convertendo em realidade o que era em Marx uma intuição ou antecipação. Pode ser útil precisar o conceito de mercado mundial e ir talvez mais além da palavra mercado.
Trata-se da criação de um espaço livre de restrições para as operações do capital, para produzir e realizar mais-valias, tomando este espaço como base e processo de centralização de lucros à escala verdadeiramente internacional. Esse espaço aberto, não homogêneo mas com uma redução drástica de todos os obstáculos à mobilidade do capital, essa possibilidade para o capital de organizar à escala universal o ciclo de valorização, está acompanhado de uma situação que permite pôr em competição entre si os trabalhadores de todos os países. Quer dizer, sustenta-se no fato de o exército industrial de reserva ser realmente mundial e de ser o capital como um todo que rege os fluxos de integração ou de repulsão, nas formas estudadas por Marx.
Este é então o marco geral de um processo de "produção para a produção" em condições em que a possibilidade de a humanidade e as massas do mundo acederem a essa produção é totalmente limitada... e, portanto, torna-se cada vez mais difícil o encerramento com êxito do ciclo de valorização do capital, para o capital no seu conjunto, e para cada capital em particular. E por isso se ampliam e se fazem mais determinantes no mercado mundial "as leis cegas da competição". Os bancos centrais e os governos podem proclamar que vão pôr-se de acordo entre si e colaborar para impedir a crise, mas não creio que se possa introduzir a cooperação no espaço mundial convertido em cenário de uma tremenda competição entre capitais.
E agora, a competição entre capitais vai muito mais além das relações entre os capitais das partes mais antigas e mais desenvolvidas do sistema mundial, com os sectores menos desenvolvidos do ponto de vista capitalista. Porque sob formas particulares e inclusive muito parasitárias, no marco mundial deram-se processos de centralização do capital por fora do marco tradicional dos centros imperialistas: em relação com eles, mas em condições que também introduzem algo totalmente novo no marco mundial.
Durante os últimos 15 anos, e em particular durante a última etapa, desenvolveram-se, em determinados pontos do sistema, grupos industriais capazes de integrar-se como sócios de pleno direito nos oligopólios mundiais. Tanto na Índia como na China constituíram-se verdadeiros e fortes grupos econômicos capitalistas. E, no plano financeiro, como expressão do rentismo e do parasitismo puro, os chamados Fundos Soberanos converteram-se em importantes pontos de centralização do capital sob a forma de dinheiro, que não são meros satélites dos Estados Unidos, têm estratégias e dinâmicas próprias e modificam de muitas maneiras as relações geopolíticas dos pontos-chave em que a vida do capital se faz e fará.
Por isso, outro elemento a ter em conta é que esta crise tem como outra de suas dimensões a de marcar o fim da etapa em que os Estados Unidos podiam atuar como potência mundial sem comparação... Na minha opinião, saímos do momento que analisava Mészáros no seu livro de 2001, e os Estados Unidos vão ser submetidos a uma prova: num prazo muito curto, todas as suas relações mundiais modificaram-se e terão, no melhor dos casos, de renegociar e reordenar todas as suas relações com base no facto de que têm de partilhar o poder. E isto, evidentemente, é algo que nunca aconteceu de forma pacífica na história do capital...
Então, primeiro elemento: um dos métodos escolhidos pelo capital para superar os seus limites transformou-se em fonte de novas tensões, conflitos e contradições, indicando que uma nova etapa histórica vai abrir caminho através desta crise.
Criação descontrolada de capital fictício
O segundo meio utilizado para superar os limites do capital das economias centrais foi que todas elas recorreram à criação de formas totalmente artificiais de ampliação da procura efectiva, as quais, somando-se a outras formas de criação de capital fictício, geraram as condições para a crise financeira que se desenvolve hoje. No artigo que os companheiros de Herramienta tiveram a gentileza de traduzir para o espanhol e publicar, abordei com alguma profundidade esta questão do capital fictício e as novas formas que se deram dentro do próprio processo de acumulação do capital fictício.
Para Marx, o capital fictício é a acumulação de títulos que são "sombra de investimentos" já feitos mas que, como títulos de bônus e de ações, aparecem com o aspecto de capital aos seus detentores. Não o são para o sistema como um todo, para o processo de acumulação, mas são-no sim para os seus detentores e, em condições normais de fechamento de processos de valorização do capital, rendem aos seus detentores dividendos e juros. Mas o seu caráter fictício revela-se em situações de crise. Quando ocorrem crises de sobreprodução, falência de empresas, etc., descobre-se que esse capital não existia...
Por isso também pode ler-se às vezes nos jornais que tal ou qual quantidade de capital "desapareceu" nalgum tropeço bolsista: essas quantias nunca tinham existido como capital propriamente dito, apesar de, para os detentores dessas ações, representarem títulos que davam direito a dividendos e juros, a receber lucros...
Evidentemente, um dos grandes problemas de hoje é que, em muitíssimos países, os sistemas de aposentadoria estão baseados em capital fictício, com pretensões de participação nos resultados de uma produção capitalista que pode desaparecer em momentos de crise. Toda a etapa de liberalização e de globalização financeira dos anos 80 e 90 esteve baseada em acumulação de capital fictício, sobretudo em mãos de fundos de investimento, fundos de pensões, fundos financeiros... E a grande novidade desde finais ou meados dos anos 90 e ao largo dos anos 2000 foi, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha em particular, o impulso extraordinário que se deu à criação de capital fictício na forma de crédito.
De crédito a empresas, mas também e sobretudo de créditos às famílias, crédito ao consumo e sobretudo créditos hipotecários. E isso fez dar um salto na massa de capital fictício criado, dando origem a formas ainda mais agudas de vulnerabilidade e de fragilidade, inclusive diante de choques menores, inclusive diante de episódios absolutamente previsíveis. Por exemplo, com base em tudo estudado anteriormente, sabia-se que um boom imobiliário acaba; que inexoravelmente chega um momento em que, por processos muito bem estudados, termina; e, se pode até ser relativamente compreensível que no mercado de ações existisse a ilusão de que não havia limites para a alta no preço das acções, com base em toda a história anterior sabia-se que que isso não podia ocorrer no setor imobiliário: quando se trata de edifícios e de casas é inevitável que chegue o momento em que o boom acaba.
Mas colocaram-se em tal situação de dependência, que esse acontecimento completamente normal e previsível transformou-se numa crise tremenda. Porque a tudo o que já disse, juntou-se o fato de que durante os dois últimos anos os empréstimos eram feitos a famílias que não tinham a menor possibilidade de pagar. Além disso, tudo isso se combinou com as novas "técnicas" financeiras, permitindo-se assim que os bancos vendessem bônus em condições tais que ninguém podia saber exatamente o que estava a comprar... até a explosão dos subprime em 2007.
Agora estão desmontando este processo. Mas dentro dessa desmontagem, há processos de concentração do capital financeiro. Quando o Bank Of America compra o Merrill Lynch, estamos diante de um processo de concentração clássico. E vemos além disso estes processos de estatização das dívidas, que implicam na criação imediata de mais capital fictício. O Federal Reserve dos Estados Unidos cria mais capital fictício para manter a ilusão de um valor do capital que está à beira de desmoronar, com a perspectiva de ter, em algum momento dado, a possibilidade de aumentar fortemente a pressão fiscal, mas na realidade não pode fazê-lo porque isso significaria o congelamento do mercado interno e a aceleração da crise enquanto crise real.
Assistimos, pois, a uma fuga em frente que não resolve nada. Dentro desse processo existe também o avanço dos Fundos Soberanos, que procuram modificar a repartição intercapitalista dos fluxos financeiros a favor dos sectores rentistas que acumularam estes fundos. E isto é um fator de perturbação ainda maior no processo.
Quero recordar, para terminar este ponto, que esse déficit comercial de cinco pontos do PIB é o que confere aos Estados Unidos a particularidade desse lugar-chave para a concretização do ciclo do capital no momento da realização da mais-valia, para o processo capitalista no seu conjunto.
Confrontados agora com uma quase inevitável retração econômica, coloca-se como a grande interrogação se, num curto prazo, a procura interna chinesa poderá passar a ser o lugar que garanta esse momento de realização da mais-valia que se dava nos Estados Unidos. A amplitude da intervenção do Tesouro é muito forte e conseguiu que a contração da atividade nos EUA e a queda das importações tenha sido até agora muito limitada. O problema é saber quanto tempo se poderá ter como único método de política econômica criar mais e mais liquidez... Será possível que não haja limites à criação de capital fictício sob a forma de liquidez para manter o valor do capital fictício já existente? Parece-me uma hipótese demasiado otimista, e entre os próprios economistas norte-americanos, muitos duvidam.
Super-acumulação na China?
Para terminar, chegamos à terceira maneira pela qual o capital superou os seus limites imanentes, que é definitivamente a mais importante de todas e levanta as interrogações mais interessantes. Refiro-me à extensão, em particular para a China, de todo o sistema de relações sociais de produção do capitalismo. Algo que Marx mencionou nalgum momento como possibilidade, mas que só se fez realidade durante os últimos anos. E realizou-se em condições que multiplicam os fatores de crise.
A acumulação do capital na China fez-se com base em processos internos, mas também com base em algo que está perfeitamente documentado, mas pouco comentado: a transferência de uma parte importantíssima do Setor II da economia, o setor da produção de meios de consumo, dos Estados Unidos para a China. E isto tem muito a ver com o grosso dos déficits norte-americanos (o déficit comercial e o fiscal), que só poderiam reverter-se por meio de uma "reindustrialização" dos Estados Unidos.
Isto significa que se estabeleceram novas relações entre os Estados Unidos e a China. Já não são as relações de uma potência imperialista com um espaço semicolonial. Os Estados Unidos criaram relações de um novo tipo, que agora têm dificuldades de reconhecer e de assumir. Com base no superávit comercial, a China acumula milhões e milhões de dólares, que logo empresta aos Estados Unidos. Temos uma ilustração das consequências que isto traz com a nacionalização dessas duas entidades chamadas Fannie Mae e Freddy Mac: ao que parece, a banca da China tinha 15% dos fundos dessas duas entidades e comunicou ao governo americano que não aceitaria a sua desvalorização. São relações internacionais de tipo completamente novo.
Mas que ocorre no seio da própria China? É a questão mais decisiva para a próxima etapa da crise. Na China deu-se internamente um processo de competição entre capitais, que se combinou com processos de competição entre sectores do aparelho político chinês, e de competição para atrair empresas estrangeiras; tudo isso resultou num processo de criação de imensas capacidades de produção, além de violentar a natureza numa escala enorme: na China concentra-se uma super-acumulação de capital que num momento dado se tornará insustentável.
Na Europa, é evidente a tendência a uma aceleração da destruição de capacidades produtivas e de postos de trabalho, para transferir-se para o único paraíso do mundo capitalista que é a China. Considero que esta transferência de capitais para a China significou uma reversão de processos anteriores de uma alta da composição orgânica do capital. A acumulação é intensiva em meios de produção e é intensiva e muito delapidadora da outra parte do capital constante, quer dizer, das matérias primas. A maciça criação de capacidades de produção no Setor I foi acompanhada por todos os mecanismos e o impulso que caracterizam o crescimento da China, mas o mercado final para sustentar toda essa produção é o mercado mundial, e uma retração deste colocará em evidência essa super-acumulação do capital.
Alguém como Aglietta, que estudou isto especificamente, afirma que realmente há super-acumulação, há um processo acelerado de criação produtiva na China, um processo que, no momento em que terminar - e tem de terminar - a realização de toda essa produção vai levantar problemas. Além disso, a China é realmente um lugar decisivo, porque até pequenas variações na sua economia determinam a conjuntura de muitos outros países no mundo. Foi suficiente que a procura chinesa por bens de investimento caísse um pouco, para que a Alemanha perdesse exportações e entrasse em recessão. As "pequenas oscilações" na China têm repercussões fortíssimas noutros lugares, como deveria ser evidente no caso da Argentina.
Para continuar a pensar e a discutir
E regresso ao que disse no início. Ainda que sejam comparáveis, as fases desta crise serão diferentes das de 29, porque naquela época a crise de superprodução dos Estados Unidos verificou-se desde os primeiros momentos. Depois aprofundou-se, mas soube-se de imediato que se estava diante de uma crise de superpodução. Agora, em contrapartida, estão adiando esse momento com diversas políticas, mas não vão poder fazê-lo muito mais.
Simultaneamente, e como ocorreu também na crise de 29 e nos anos 30, ainda que em condições e sob formas diferentes, a crise combinar-se-á com a necessidade, para o capitalismo, de uma reorganização total da expressão das suas relações de forças econômicas no marco mundial, marcando o momento no qual os Estados Unidos verão que a sua superioridade militar é somente um elemento, e um elemento bastante subordinado, para renegociar as suas relações com a China e outras partes do mundo. Ou vai chegar o momento no qual dará o salto para uma aventura militar de consequência imprevisíveis.
Por tudo isto, concluo que vivemos muito mais que uma crise financeira, mesmo estando agora nessa fase. Estamos diante de uma crise muitíssimo mais ampla. Ora bem, tenho a impressão, pelo tom das diferentes perguntas e observações que me fizeram, que muitos são da opinião que estou a pintar um cenário de tipo catastrofista, de desmoronamento do capitalismo... Na realidade, creio que estamos diante do risco de uma catástrofe, mas já não do capitalismo, e sim de uma catástrofe da humanidade. De certa forma, se tomarmos em conta a crise climática, possivelmente já existe algo assim...
A minha opinião (junto com Mészáros, por exemplo, mas somos muito poucos os que damos importância a isto) é que estamos diante de um perigo iminente. O dramático é que, de momento, isto afeta diretamente populações que não são levadas em conta: o que está ocorrendo no Haiti parece que não tem a menor importância histórica; o que acontece em Bangladesh não tem peso mais além da região afetada; muito menos o que acontece na Birmânia, porque o controle da Junta militar impede que ultrapasse as suas fronteiras. E o mesmo na China: discutem-se os índices de crescimento, mas não as catástrofes ambientais, porque o aparelho repressivo controla as informações sobre as mesmas.
E o pior é que essa "opinião", que é constantemente construída pelos meios de comunicação, está interiorizada muito profundamente, inclusive em muitos intelectuais de esquerda. Tinha começado a trabalhar e a escrever sobre tudo isto, mas com o começo desta crise, de alguma forma tive de voltar a ocupar-me das finanças, ainda que não o faça com muito gosto, porque o essencial parece-me que se joga num plano diferente.
Para terminar: o fato de que tudo isto ocorre depois desta fase tão larga, sem paralelo na história do capitalismo, de 50 anos de acumulação ininterrupta (salvo um pequeníssima ruptura em 1974/1975), assim como também tudo o que os círculos capitalistas dirigentes, e em particular os bancos centrais, aprenderam da crise de 29, tudo isso faz com que a crise avance de maneira bastante lenta.
Desde setembro do ano passado, o discurso dos círculos dominantes vem afirmando, uma e outra vez, que "o pior já passou", quando o certo é que, uma e outra vez, "o pior" estava por vir. Mas insisto no risco de minimizar a gravidade da situação, e sugiro que nas nossas análises e na forma de abordar as coisas deveríamos incorporar a possibilidade, no mínimo a possibilidade, de que inadvertidamente estejamos também interiorizando esse discurso de que, definitivamente, "não acontece nada"...
* François Chesnais é economista, faz parte do Conselho Científico do ATTAC-França, é diretor de Carré Rouge e membro do conselho consultivo da revista Herramienta, com a qual colabora assiduamente.
Esta apresentação foi realizada no encontro organizado pela revista argentina "Herramienta" em 18 de Setembro de 2008. A transcrição e preparação para a sua publicação é de Aldo Casas.
Versão publicada no portal Esquerda.Net. Tradução para o português: Luis Leiria (Esquerda.Net)
(1) Karl Marx, El capital México, FCE, 1973, Vol. III, pág. 248.
(2) Idem.
(3) "El fin de un ciclo. Alcance y rumbo de la crisis financiera", en Herramienta Nº 37, marzo 2008.