Manifesto Tímido

Manifesto Tímido

24-05-2008

Um dia antes do grande dia, vimos para cá publicar o esclarecedor texto que o amigo João Guisan Seixas nos fez o favor de escrever, e que ele próprio lerá como cólofon à nossa multitudinária(:roll:) manifestação de domingo.

Naquele dia funesto, como todo o mundo sabe, Gregor Samsa acordou na sua cama convertido num gigantesco insecto. Mais ou menos assim é que começa ?A Metamorfose? de Kafka, um judeu checo que escrevia em alemão e que morreu infelizmente 42 anos antes que fossem fundadas as Nações Unidas, das quais teria merecido ser Secretario Geral, ou polo menos o seu mais legítimo cronista. Deveria ter-se orgulhado ele de ser judeu, de ser checo, ou germanófono, ou de ter escrito ?A Metamorfose??

Mas eu pergunto-me, sobretudo, por que caralho lhe teria ocorrido ao coitado de Gregor Samsa sair do armário? Nom teria sido mais útil ter ficado para sempre a arrastar-se no húmido conforto da cave aberta nos baixos fundos da última gaveta, e só sair dali de vez em quando, no mais escuro da noite, à procura, no chão da cozinha, de alguma migalha de pão, melhor com a sua gota de leite meio azedo, e se for possível com aquele toque de verdura podre que tanto o sublimava...? (Que suspeito rigor, o de Kafka, à hora da descriçom das delícias culinárias das baratas!)

Que se lhe perdia àquele insecto sensível sobre as molas da cama e entre lençóis de linho? Que se lhe perdia no mundo dos homens e dos bifes com batatas? Todos os seus problemas nom provinham da sua condiçom de insecto, mas da sua pretensom inútil de fazer-se um lugar num mundo que nom o merecia.

Por isso neste dia do Orgulho Lusista e Reintegrata, permitam-me que vos fale menos do lusismo e do ?reintegratacionismo?, e mais dos orgulhos e dos dias.

Eu, que sou varom, heterossexual e branco, que motivos terei para poder orgulhar-me? Procurei em vão as causas porque a gente costuma sentir-se orgulhosa e encontrei uma data delas nas datas do calendário. Penso que, tirando a dor de dentes e os calos mal curados, cada dia as pessoas encontram cinco ou seis motivos para se sentirem orgulhosas. Curiosamente sempre se sentem orgulhosas do que ?som?, mas nunca do que ?fazem?. Permitam-me, portanto, que ponha em causa o próprio conceito de ?orgulho colectivo?. O racismo, diz-se, consiste em culpar alguém, nom polo que faz, mas polo que é. E daí, sentir-se orgulhoso daquilo que se é, e nom daquilo que se faz, nom será por acaso uma forma de racismo? O orgulho colectivo parece ser o último refúgio de todos os ineptos. Ser português, espanhol, catalão, galego, basco, cigano, camionista, irlandês, metodista, heavy metal, sócio do Celta ou aderente das Selecções do Reader?s Digest, ou qualquer outra coisa que nom custa muito trabalho, parecem ser os motivos de maior orgulho. Curiosamente nom existe o dia do orgulho escultor, nem pintor, nem arquitecto, nem canalizador, nem lavrador, nem padeiro. Do orgulho da obra bem feita. As únicas causas do nosso orgulho som causas de nascença, ou todo o mais de aderência automática a um grupo. Num mundo, nom sei se mais feliz, mas sim mais justo, ninguém deveria possuir outra fonte de ingressos que nom fossem os direitos de autor. E tanto faria que fossem como autor de uma ópera preciosa, de um pão perfeito, de uma aula bem dada, ou de uma viajem harmoniosamente conduzida (porque nesse mundo nom haveria auto-escolas, e o aprendizado das habilidades para a conduçom de transportes públicos de passageiros se incluiria dentro das aulas de Música).

Por isso eu venho hoje aqui reivindicar, nom o orgulho, mas sim a timidez, e mesmo, se me apuram, a vergonha. Eu uma vez tive um amigo que, muitos anos depois de deixar de o ser, chegaria a altas responsabilidades de governo. Lembro que, numa ocasiom, nom sei porquê, lhe deu na telha de se pôr a dizer-me mal dos tímidos, que a timidez era um atraso, que havia que ser firmes e decididos, que sendo tímidos nom se ia a parte alguma. Surpreendeu-me tanto que fosse precisamente ele a fazer aquele discurso que nom acertei a responder-lhe nada, atrapalhado, a olhar para ele e a pensar para mim: ?Mas, ó infeliz, nom te dás conta de que tu és um tímido, e aliás um tímido da pior espécie: um tímido reprimido??.

Na verdade todo o ser humano é um tímido, e o único que podemos fazer a respeito é o pior que se pode fazer nestes casos: reprimi-lo. Parece que a história nom me deu a razom, pois aquele ex-amigo chegou muito alto, e eu fiquei apenas à altura deste estrado. Mas alguém disse alguma vez que toda essa segurança de quadros agressivos ficava ao descoberto, ou directamente ia pola pata abaixo, quando eles ficavam dez minutos encerrados num elevador entre dous pisos. E antes ou depois, ou polo menos as nossas pálpebras no último momento, havemos de ficar entre dous pisos.

Sejamos tímidos, e agora sim, mesmo orgulhosamente tímidos, que é a única maneira de sermos humanos. Por isso eu hoje aqui, diante de todos vós, vou sair do meu armário, vou tirar a minha máscara e vou reconhecer publicamente que, sim senhores, eu sou tímido, levo anos a fazer figura de showman, mas sou tímido convicto, orgulhosamente, ou melhor vergonhosamente, ou melhor orgulhosamente vergonhosamente tímido.

Devemos sentir orgulho por sermos reintegratacionistas e lusistas? Nom deveríamos sentir vergonha? Temos uma ideia luminosa, proveitosa, judiciosa, razoável, do mais puro bom-senso, de utilidade pública, ?mesmo inclusive até? de interesse hidrológico, numismático e socio-económico... Uma ideia que suporia economizar milhões de euros anuais inutilmente gastos em inúteis projectos de pretensa normalizaçom linguística, e destiná-los a acções culturais (e nom só) de mais préstimo (como por exemplo ensinar a guiar os motoristas enquanto ouvem o Stabat Mater de Pergolesi, de maneira a que as curvas encaixem na melodia e as paragens coincidam com a cadência). Temos uma ideia universal que podia ter servido para tirar esta cultura deste buraco de barata em que parece encontrar-se tão confortável, e só sabemos fazer com ela assembleias, lutas intestinas (e intestinais às vezes), mixórdias ideológicas, jogos de salom ou de guerrilha.

Mas a pergunta é ?o reitegratacionista nasce ou faz-se??. Nom é o reintegracionismo, antes que um movimento ideológico, um projecto, uma obra? Por pôr só um exemplo, o Alonso, a Sílvia, a Irene e o Chico devem sentir orgulho polas aquelas maravilhosas jornadas para os pequenos que organizavam todos os Verões em Tui, mas eu nom tenho direito algum para me orgulhar disso, só por ser também lusista. Orgulhemo-nos do que façamos, mas nunca do que somos. Ou orgulhemo-nos só da valentia de reconhecer as nossas misérias. Mesmo com a nossa torpe maneira de agir, fomos capazes de desafiar a incompreensom do mundo e levantar no ar uma cousa que, se nom fôssemos nós, nom teria existido.

Eu hoje tenho saído do armário, mas de passagem olhei-me no seu espelho. Tenho saído definitivamente do armário e reconheço-me. Eu fingia ser uma gravata e resulta que era só uma toalha pendurada do pescoço. E fazia de conta que era uma túnica branca, mas nom passava de ser essa toalha de banho um tanto gasta, cruzada de qualquer maneira sobre o peito, com que tento fazer rir, a imitar um romano, os mais pequenos, quando saio do duche. Enganava-me julgando-me turbante de califa e nom era senom uma toalha mal enrolada na cabeça, como aquela cor-de-rosa que orna a da nossa musa deste ano, a actriz Luciana Abreu.

Mas quando saem as toalhas dos armários, sai a verdade a rua, e por momentos toda a gente vê o que toda a gente esconde. Por que escondemos as toalhas ? a nossa condiçom de vulgares, reles, servis, tímidas toalhas? Orgulhe-se a toalha de enxugar a água, o frio, o suor da pele, e de devolver o corpo ao ar, ao ser, ao mundo. Queimemos as bandeiras. Alcemos as toalhas no mais alto dos mastros, mas isso sim: só com as duas molas de ordenança, sem orgulho nem hino. Porque os hinos som sempre inchados e orgulhosos. Há pouco se convocou um concurso para dotar de letra ao hino espanhol. Erro terrível. Era o melhor que ele tinha. Por isso aqui, solenemente, proponho que se convoque, em justa correspondência, concurso público para ver quem consegue tirar-lhe melhor a letra ao hino galego.

Começava a perguntar-me: porque lhe teria ocorrido ao coitado de Gregor Samsa sair do seu armário. Agora ocorre-me a resposta: porque lhe tinha ficado pequeno. Mas é pena. Estava-se muito melhor lá dentro! Somos insectos sensíveis arrojados sem remédio num mundo (ou polo menos numa comunidade autónoma) governado por homens com cérebros de mosquito. Douglas Adams, em cuja honra se celebra internacionalmente este dia da toalha, no seu ?Guia do Mochileiro das Galáxias?, dá conta de uma máquina enorme a que as pessoas fornecem, durante anos, milhares de dados e informações para que ela revele o segredo da existência, e quando finalmente parece que vai resolver todos os enigmas, a máquina limita-se a dar esta resposta: ?42?.

42! Ó irmãos (e irmãs, e mesmo, se estiver presente, algum cunhado), nom reparais na coincidência! O mistério, com efeito, está já resolvido! Tudo encaixa! E nom me refiro apenas ao pavoroso facto de Luciana Abreu ter nascido num 25 de Maio, dia internacional da toalha, e ter trazido alguma vez uma delas enroscada na cabeça. Tudo, absolutamente tudo, parece ter estado escrito desde a noite dos tempos! O cosmos desvela os seus mistérios! Esses fios ocultos. Essa estranha relaçom entre as enchentes do Tigris na antiga Mesopotâmia e a última gira dos Caneiros! Dados que nos tem ido deixando alguma inteligência superior. Já nom há dúvida de que somos o resultado da evoluçom das lombrigas de algum extraterrestre que visitou a Terra. 42! É que nom o vedes? Nom está claro? O número de anos que medeiam entre a morte de Kafka e a assembleia inaugural das Nações Unidas!

Nom sei se o sentido deste texto ficou claro, nem sequer se ele o tem. Só queria era encorajar-vos, isso sim timidamente, para continuarem a trabalhar, também timidamente, como baratas que pululam debaixo da alcatifa da sala de plenários da Assembleia Geral das Nações Unidades e que nos esforcemos, mas sem roer um só dos cabos que servem de interligaçom com outros países, em abrir túneis secretos, túneis tímidos, que comuniquem directamente aquela pata noroeste do lugar ocupado pola representaçom espanhola que corresponder à Galiza, com todos os outros lugares de língua portuguesa.

Escrito ?s 05:13:00 nas castegorias: Principal
por admin, 1877 palavras, 5073 visualizaçonsChuza!

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4 comentários

Comentário de: Batiscaffo [Visitante]  
Batiscaffo

El Pais, hoje:
” La crisis en el Partido Popular
Rajoy, acosado por 200 simpatizantes, responde: “No voy a tirar la toalla”

http://www.elpais.com/articulo/espana/Rajoy/acosado/200/simpatizantes/responde/voy/tirar/toalla/elpepuesp/20080524elpepinac_2/Tes

24-05-2008 @ 08:21
Comentário de: Heitor [Visitante]  
Heitor

Terrivelmente magnífico !!

(e o comentário também)

Saúde ! ;))

24-05-2008 @ 12:59
Comentário de: Quilapayun [Visitante]  
Quilapayun

Mais um hino toalheiro:

“Pum pum”
“?Quién es?”
“Una rosa y un clavel”
“Abre la toalla!”

“Pum pum”
“?Quién es?”
“El sable del coronel”
“Cierra la toalla!”

“Pum pum”
“?Quién es?”
“La paloma y el laurel”
“Abre la toalla!”

“Pum pum”
“?Quién es?”
“El veneno y el ciempiés”
“Cierra la toalla!”

Al corazón del amigo,
ABRE LA TOALLA!
Al diente de la serpiente,
CIERRA LA TOALLA!

ETC.

24-05-2008 @ 14:20
Comentário de: suso [Membro]  
suso

Nom tenho palavras!!! Aliás, tenho apenas duas palavras: IM-PRESSIONANTE!!! Amigo João, estou imensamente im-pressionado, agradecido e emocionado!!! :’) A sete horas (de relógio galego-português) do II Dia do Orgulho Lusista e Reintegrata e VIII Dia Internacional da Toalha… Obrigado, muito obrigado, muitíssimo obrigado!!! :)

24-05-2008 @ 18:02