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Comparsa

Vou trabalhar de empregado de mesa à "comparsa" que gerem os pais de Bàrbara em Ontinyent. Chego e sou muito bem recebido pela famíla. Começo a trabalhar e a actividade é frenética: há mais de sessenta pessoas a que servir a comida. Enquanto comem tenho alguns minutos e sento-me, empunho um cigarro como estilete e começo a análise da situação:

Follow up:

1- Levo uma camisola de Nunca Mais. E para mais inri, num povo qualquer de um território, o valenciano, em que o espanholismo se tem preocupado de introduzir e explorar o ódio ao catalão, levo uma camisola de Nunca Mais Catalunya. Muitos olham para mim como má cara. Aquele, que Bàrbara me disse falaginsta, levanta o braço para que vá servi-lo. Pergunta-me em espanhol alguma coisa que não entendo, porque há muito ruído, e respondo em catalão que se me pode repetir. Os amigos que o rodeiam e ele próprio ficam surpreendids (tinham-lhes dito já que era galego), começam a rir e de repente todos me felicitam. Até o temido falangista está agora orgulhoso do valenciano (já dizer que está orgulhoso do catalão é muito), porque, ainda que a recusse, sabe que é a sua língua.

2- À parte algum despistado que se dirige a mim em castelhano pensando que não entendo, todos sem excepção falam catalão entre eles. Ontinyent é considerado um povo por aqui, apesar de ter 31.000 habitantes e muita indústria. Quer dizer, que seria uma cidade na Galiza, mas todos/as falam catalão (contrariamente à Galiza). Curiosamente, no entanto, quando começam a fazer uma espécie de representação de Mouros e Cristãos (a comparsas são associações que preparam essas festas), mudam para castelhano. São representações em verso, de rima mais ou menos fácil e arte menor. E tudo isto faz-me pensar que: a) a tradição destas festas é plenamente espanhola; b) o seu início relativamente recente e mais bem romântico. O curioso, no entanto, é que todos acreditam a tradição vir já desde a Idade Média. E penso no curioso de a grande maioria de celebrações galegas terem origem precisamente aí, na Idade Média, e estarem, pouco a pouco, a morrer. Eles recordam a sua história. Nós rejeitamos o nosso presente, porque, desde essa época longínqua, nunca se foi. Apenas alguns citadinos gostamos disso e o reivindicamos, porque nunca foi o nosso presente. Nos dois casos, buscamos um paraíso perdido. Uns adiante. Outros atrás.

3- A comparsa em que me encontro chama-se Taifes e é uma comparsa moura. Todos os que lá estão representarão mouros nas festas de Ontinyent de finais de Agosto. Por isso uma menina recita versos fazendo de cristã para que outra possa recitar os seus fazendo de moura. Quando fala a cristã, todos gritam e abucheiam. Têm orgulho mouro, do mais velho ao mais novo. A comparsa une-os arredor dum mesmo símbolo: a mouraria.

A poucas quadras de ali, no entanto, há em Ontinyent uma importante comunidade árabe (e muçulmana). Não sei o número exacto, mas comentam-me que existe uma mesquita em Ontinyent e que estão a pedir outra, porque o número de muçulmanos residentes aumenta a grande velociadade. A comparsa é moura, mas não se vê nenhum mouro por aqui. Disque houve algum uma vez, a fazer de empregado de mesa, mas não voltou. O conflito é apassionante, e tem história.

Há uns anos uma comparsa moura, com toda a intenção de fazer a festa o melhor possível, foi à Andaluzia comprar uma alcatifa para a representação. Compararam uma, a mais linda, com umas curiosas inscrições em árabe que ninguém entendia, e com ela fizeram a representação, de grande sucesso tão bonito que era tudo. Foi no dia a seguir, no entanto, quando um importante empresário muçulmano da comarca lhe pôs uma denúncia: aquelas letras eram do Corão e o grande problema é que havia mulheres a passar por cima. Grande escândalo por toda a parte, claro.

Por estes e outros conflitos, uma outra comparsa, também moura, decidiu fazer um exercício de integração e contratar árabes para a representação. Com verdadeira meticulosidade, tentou-se recriar fielmente a vida na Idade Média daquele recanto de Al-Ándalus, pedindo conselho ao próprio imame de Ontinyent. Tiveram um trabalho impressionante, mas nada é perfeito, e no dia da representação, apesar do realismo ou precisamente por isso, ninguém gostou. Faltava-lhe colorido, e era pouco espectacular.

A comunidade árabe não gostou da resposta. O comentário dos mais abertos é que claro, que entendem o ponto de vista da comunidade árabe, mas que eles têm de entender também que essas são as suas tradições e respeitá-las, igual que se respeitam as suas crenças religiosas e se lhes dão mesquitas e tudo. Também é que são pouco compreensivos. E aliás, que são um bocado machistas, porque a história essa das mulheres a passar por cima da alcatifa já me dirás.

E, já agora, esquecia dizer: o dia grande das festas de Mouros e Cristãos é o último. A atracção principal é a queima de Maomé. E na comparsa havia seis mulheres de um total de sessenta e sete pessoas. Quatro dessas mulheres estavam detrás da barra.

17- 06 - 2004, Pensamento social

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