resta-nos tanto mar por engolir
amigo
tanta verdade de sangue descarnada
tanta brecha que coser
e velear à sua margem
resta-nos tanto mar por engolir
vemo-lo desta praia de pedrinhas e cunchas
que o tempo desfez
antes eram os cons de semuinho
ou o com de três pés
ou a punta cavalo
mas o farol fez-se areia
e como a areia
continuamos mareados
o tempo fez-se idade
embarcados nesta distância que nos une
esta dorna que é um presente de gerações e anos
dalguma maneira conseguimos viver sem recordar-nos
surpreende-nos um dia
o piano esquecido cujo pedal deixa ainda reverberar sakuras
ou um disco de tangos
e todos os recordos são presentes do passado
o tempo
vemo-lo agora
fez-se idade
o tempo
que será história
de nós
talvez nada se salve na memória
de todos
talvez lembranças baças ou só nomes em livros
que ninguém leia
- e se os lessem, sejamos sérios, o que leriam? -
talvez nada tenhamos feito quando o vento da história nos sobarde a nos rebentar a vela
talvez engulamos o mar de vaga em vaga
talvez não possamos mais coser a brecha
talvez só fique de nós esta verdade de sangue
nem somos nem seremos nada
mas ao enfrentar a morte
como a enfrentamos agora nestes versos
flutua ainda no mar uma certeza
que cada vento
que alguma vez navegámos juntos nesta dorna
foi para o mundo ser melhor
agora
Chuva na primavera,
dilúvios no verão,
e um outono seco:
será que a natureza nos sorri
e todos poderemos compartir o seu prémio?
Por favor não me confundas
com um passarinho
quando me atiro ao teu jardim
para comer as maçãs.
Fui lá para mendigar
um pouco de arroz,
mas o agasalho florido dos arbustos
por cima das rochas
fez-me esquecer a razão.
(Ryôkan)
Para o nosso bem,
os moluscos e os peixes
oferecem-se
desinteressadamente
como comida.
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Na minha pequena tigela das esmolas,
amores-perfeitos e dentes-de-leão
à mistura
como uma oferenda
aos Budas dos Três Mundos.
A colher amores-perfeitos
à beira da estrada,
com a mente absorta,
deixo atrás a minha tigela.
Coitada!
Outra vez esqueci
a minha pequena tigela. ?
Ninguém vai apanhar-te,
certeza que ninguém vai apanhar-te,
triste tigela minha!
(Ryôkan)