Samaro

Tocavas o mar quando cantavas
e levou-te a maré
dentro da terra.
Velha estátua de salitre escondida à memória.
Restos num nicho absurdo com teu nome na porta
- Francisco Lojo Ouvinha -
esse que nunca foste.
Meu querido Samaro.
Ainda busco em ti alguma coisa que me diga.
Como busquei em tempos reflectir-me nos barcos
dos piratas dos filmes busco às cegas
em ti uma força maruja que me levante a vida.
Gostava tanto de dizer que a tenho.
Mas tiro a cabeça pela borda e só vejo água salgada
e a imagem de uma gaivota reflectida,
sem rasto da minha cara.
Francisco o Samaro.
Não te chamar avô traz-te de volta de uma forma nova:
único como foste,
tão pouco eu.
Simplesmente o Samaro,
o que passeava com o cão e sem pessoas;
o que mal conseguia compartir uma bóia;
o que guardava alguma coisa dentro
que não sabias nomear
mas que buscavas
como nos mapas a geografia do mundo que não viste.
De todas as vidas que me precederam em ti vejo
clara a minha ferida.
Na superfície em ondas da tua cara arrugada,
nos olhos vidrosos quando falava contigo e tentavas
ser um herói,
tu que já naufragaras e mal podias ter-te
de pé.
Gostavas tanto de mim.
Sinto isso ainda
como uma facada na garganta,
a mesma que tenta ser a tua,
se alguma vez canto.
Esta ferida limpa numa forma de dorna,
que me aperta as cordas vocais
agora.

Laru

Mal consigo lembrar-te:
aquele homem
de chapéu e de fato incompreensíveis
e a careca que tenho.
Não me vem à memória mais que a imagem
de um velho elegante no sofá da casa
de meus tios:
um homem alto, dignamente assentado
nos seus noventa anos. Tinhas
aquela idade e um sorriso
que para si queriam as crianças.
Mas mal consigo lembrar-te.
Imagino-te a vida
de olhada alegre e incisiva.
Talvez seja um recordo reflectido
nas pregas da cara de meu pai
que falam de ti.
Sofreste mas não soube. Papá
contou-me anos depois dos ideais políticos.
Da padaria ao mundo havia um passo
que não hesitaste em pedalar.
Deveste rolar muito de fato e bicicleta.
Lembro sim quando morreste: havia
uns bons meses que não ia visitar-te
e a notícia caiu como uma lousa.
Não fiquei triste por ti, mas por um fim
de semana perdido num enterro:
fervilhava-me a vida na cabeça
e faltava-me perspectiva.
Agora és-me só um recordo vago.
Quando penso em ti vem-me à memória
o espaço diáfano do lar de dia
a que ias jogar dominó.
E reconheço nas caras da família
a tua cara de alegria
quando há alegria.
Mais nada.
Que ferida
me tens deixado é um mistério.
Mas receio que um dia hei de encontrá-la
ao me apalpar a pele escorregadia
da cabeça sem pêlos.

Tags: av?, heran?a, laru
minutos

cinco minutos

tensão nos pés que alastra
à respiração

respiração de aço
em corpo de veludo
totalmente acordado

o mar no estômago constrói as pontes


cinco minutos

depois o mundo

(loto, perna direita)

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