mar

dói-me o mar
em cada tecla
o mar
em ondas sonoras
a sugerir teu nome
a ser escrito
no mar
em cada mar
de cada tecla
em que começa sempre o teu nome

Intra!

Tudo acontece dentro. Por trás dos olhos está a visão do mundo. Voltei ao peito de pedra granítica chamado Galiza e no percurso caíram as muralhas. Agora é Intra!, a casa no umbigo do corpo, como a arte de Fabiana Barreda que ilustra esta janela ao mundo.

Samaro

Era uma vez um homem que levantava cordas de bateia com apenas uma mão. Era eu criança e lá estava, com os olhos arregalados, para poder dar testemunho nestas linhas. Era um homem que sempre tinha dormido na tilha da sua dorna e mal conseguiu depois dormir em camas fofas. Era um homem que, em criança, se erguia cedo porque a dorna tinha de de ir ao mar, e mesmo que ele não fosse naquela altura, não podia continuar a empregar a vela como cobertor. Era um homem de pele dura e barba curta de salitre, que chegando o natal cantava tangos e havaneras com voz de tenor. Era uma vez o meu avô, e continuar a ser, colado ao sofá da minha casa antiga.

Francisco de seu nome, Samaro de sua alcunha, o seu corpo moldou a complexão forte de todos os Samaros que depois viemos. Nunca soube donde lhe vinha o sobrenome, que suponho herdado. Agora a rede oferece-me apenas a hipótese de Santo Amaro, mas eu prefiro continuar a pensar que venha de mar, por meio de alguma engenharia linguística popular que desconheça.

Foi este o homem que me fez brinquedos na minha infância. Arcos que fossem, setas, espadas de madeira para aumentar os sonhos de Robin Hood ou de piratas que povoavam o meu imaginário. Brincava eu com a as minhas imagens adquiridas de filmes, e tudo aquilo ficava muito longe da realidade. Daí que as aventuras nas Caraíbas de Errol Flynn ou Kirk Douglas em nada me fizessem pensar daquela no meu avô, ele que sabia de mar mais que Flynn e Douglas juntos, e talvez até soubesse mais das Caraíbas, tanto como gostava dos seus mapas e atlas.

Quando, já no liceu, eu e alguns amigos levámos uma iniciativa para reciclar baterias, lembro ter assistido em silêncio às brigas dele com a minha mãe, que insistia em comprar novos tachos, em lugar de empregar os que o Samaro teimava em reciclar com novas pegas de madeira. Naquela altura, inconsciente, estava sem pensar do lado da minha mãe. Suponho que porque o meu avô não sabia que coisa fosse essa da reciclagem, se bem que sempre a tivesse feito, e apesar de que eu, sabendo a teoria, não chegasse nem aos calcanhares do exercício ecológico que era a vida do Samaro.

Falo do que eu lembro dele quando eu era criança e ainda depois, mas sei que este homem teve uma vida muito antes da minha chegada ao mundo. Qual fosse é que eu não sei. Apenas chego a conhecer fragmentos. Casou com a minha avó, isso é certeza. Também sei que assistiu alguma manifestação do 1º de Maio durante a II República, mas não pude saber muito mais, porque a minha avó o fez calar por medo. Trabalhou como ninguém pode imaginar, e no tempo livre simplesmente passeava com o seu cão, sem passar demasiado pela taberna, como sim fazia a maioria dos seus iguais. Lembro-o solitário, e suspeito que sempre tenha sido.

Sei também que ia procurar mexilhão longe, três ou quatro homens na mesma dorna, viagens de vários dias a velear, saindo da calmaria da ria para onde o Atlântico se enerva. Ele vem dessa época em que as indústrias de salga de peixe e de marisco começavam a agromar na Ria de Arousa, e homens, mulheres e crianças jogavam as suas vidas para alimentá-las. Da época, também, em que começou a haver movimentos operários, que suspeito Samaro tenha rondado, sem se implicar demasiado, como correspondia a uma pessoa discreta como ele.

Chegou-nos de uma época em que o "repente" era uma causa de morte, e de repente quis falar dele. E depois desta mínima lembrança que aqui deixo, resulta-me impossível imaginá-lo como seguramente esteja hoje, depois dos enfartes e a apoplexia: grudado ao sofá da casa dos meus pais na Ilha, dormitando perante um ecrã de TV de que só lhe interessaram, em toda a vida, as previsões climatéricas.

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