Distância - 5

Paráfrase das ensinanças zen. A ponta de um alfinente ou o grossor de um pêlo podem ser distâncias mais grandes que o Canhão do Colorado ou a distância daqui ao Canhão do Colorado. Para além da distância existe o movimento ou a intenção do movimento. E o desejo integrado no corpo da distância talvez não responda às leis da dinâmica, mas predispõe a mover-se mais que uma fita de borracha esticada na mão de uma criança. Aeronauta Eugénio. Viagem astral em terras de Madrid. Fim-de-semana.

Passará

Tenho colchão novo. Não consegui dormir. Estou mesmo cansado, perdendo tempo até às 16:00, que começo as aulas. Lá estarei até as 21:00 e depois numa reuinião da DIGUEM NO: (Plataforma pel no a la constitució europea). Não me apatece mesmo nada ir à tal reunião, mas não tenho mais remédio: o nome pus-lho eu na anterior assembleia (a primeira), e há pessoal que espera que lá esteja. Depois de tudo, também estou contra essa constituição, e a plataforma pode servir-me para fazer amigos do meu pau, ou isso espero.

Tenho saudades de Bàrbara. O seu corpo miúdo entre os meus braços. Há coisa de um ano a ideia de viver só fazia-me uma certa graça. Agora não. É tudo silêncio no meu apartamento: menos o ruídos dos carros a passar mesmo pela janela. É tudo vácuo em cada um dos quartos, menos um magote de objectos que nada ou pouco me dizem. É tudo nada, menos aquilo que de quando em quando aparece perante mim para recordar-me que é mesmo nada. Se não fosse Bàrbara.

Ponho o CD dos Lax'N'Busto que ela me deu em Lisboa para gravar. É bom. É muito bom. Ironias ou não, simples curiosidade que agora lembro: há uma canção linda que se chama "Dolça és la sal", e cujo estribilho diz "Sara, tu ets el que m?envolta". Sara. Lembro-a. Pouco. De quando em quando. E sempre que ouvi esta canção com Bárbara, deu-me um sei-lá-o-quê de medo, porque eu cantava a tornada e perguntava-me que pensaria ela (Bàrbara) de que cantasse com esse entusiasmo. Na verdade, sempre o fiz porque a canção é dela, de Bàrbara, mas creio ter descoberto também esse arrepio de incomodidade de um segundo em sua cara.

Não sei se é pouco maduro querer apagar tudo o imediatamente anterior à relação. Há algo disto na nossa. Não muito, apenas pequenos tremores de pele quando alguém fala de tal ou qual pessoa, se vier ao caso. Às vezes um pouco mais. Como no verão. Cheguei a Compostela e mesmo ao sair do carro achei Sara. Tomámos um café e mais nada. Contei-lho a Bàrbara e pôs-se mesmo nervosa. Não disse nada, mas a sua voz tremia do outro lado do telefone. Levávamos apenas dois meses, e ela conhecia bem a minha relação anterior. É normal. Depois contou-me. É normal. Tudo passou. Eu também tenho essas reacções. De quando em quando fala de ?el gallec?, o seu anterior namorado (também era galego, coisa engraçada), e não gosto, resulta-me incómodo. Ultimamente até tenho mais medo ainda. Está em Lisboa. Está longe. Vai conhecer pessoas, quem sabe se melhores para ela do que eu. Tenho medo de quando em quando. É normal. Passará.

Lisboa, portanto

Cheguei. Cheguei ontem, na verdade, mas é só agora que começo a escrever. Dez horas de viagem na ida, por volta das onze para a volta. Alacant está longe, fica demonstrado. Digo-o como um absoluto, apesar de estar a escrever desta cidade, e repito para ser mais específico: Alacant está longe: de mim.

À parte isso, reparei de novo como eu adoro Lisboa. Normalmente, sempre me entra um sei-lá-o-quê quando leio ou ouço um reintegracionista falar de Lisboa. Tenho um certo medo aos tópicos, a dizer verdade, e Lisboa é dos grandes. Mas estive lá e vivi mais uns dias as ruas velhas, os prédios de inícios de século. Para um espanhol pode ser simplesmente a imagem de um país mais pobre do que o seu. Para mim não pode ser outra coisa que um cidade que conserva a sua história, que a vive. Não a história de grandes monumentos, mas a história do fervilhar de milhares de pessoas em cada um dos cantinhos, edificações, habitáculos. O residencial onde estivemos a dormir a Bàrbara e eu, por exemplo, conservava interfones de deus sabe quanto tempo: uma espécie de trombetinhas coladas à parede com, suponho, canalizações que subiam até cada um dos andares. Lá estava a vida de alguém que falou por eles há tempo para chamar os amigos para ir de excursão à Serra da Estrela ou Sintra; ou a namorada, cheio de nervos, para passear de mãos dadas num entardecer outonal liboeta; ou simplesmente o amigo da criança que queria jogar a bola no largo ao lado com o seu fato de calças curtas.

Os interfones. Reparei neles enquanto nos beijávamos e algo nos impedia encostar-nos à parede. Essa cena tórrida da última noite, em que tudo pede sexo, tão difícil verbalizar o adeus e a despedida. E essa antiguidade da cidade que se me resume agora na palavra cinzento (por não dizer outono, folhas a cair, pôr-do-sol, Lisboa...) deu luz além do corpo à tristeza dos dois corpos, quase dois corpos, um corpo ou apenas partes em fricção. E tudo era unidade, Lisboa e corpos. E algo ficou colado, e trouxe algo de Lisboa aqui no peito (o colar que a Bárbara me deu?) que me permite ainda respirar essa luz baça e sentir-me ainda, mesmo que seja pouquinho, em casa.

13- 10 - 2004, intimidades

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