«Limpia, fija y da esplendor»
RAE PELUQUEROS

Vi-o com estes olhinhos e tirei a foto com aquela camarinha. Um poema...

Samaro

Era uma vez um homem que levantava cordas de bateia com apenas uma mão. Era eu criança e lá estava, com os olhos arregalados, para poder dar testemunho nestas linhas. Era um homem que sempre tinha dormido na tilha da sua dorna e mal conseguiu depois dormir em camas fofas. Era um homem que, em criança, se erguia cedo porque a dorna tinha de de ir ao mar, e mesmo que ele não fosse naquela altura, não podia continuar a empregar a vela como cobertor. Era um homem de pele dura e barba curta de salitre, que chegando o natal cantava tangos e havaneras com voz de tenor. Era uma vez o meu avô, e continuar a ser, colado ao sofá da minha casa antiga.

Francisco de seu nome, Samaro de sua alcunha, o seu corpo moldou a complexão forte de todos os Samaros que depois viemos. Nunca soube donde lhe vinha o sobrenome, que suponho herdado. Agora a rede oferece-me apenas a hipótese de Santo Amaro, mas eu prefiro continuar a pensar que venha de mar, por meio de alguma engenharia linguística popular que desconheça.

Foi este o homem que me fez brinquedos na minha infância. Arcos que fossem, setas, espadas de madeira para aumentar os sonhos de Robin Hood ou de piratas que povoavam o meu imaginário. Brincava eu com a as minhas imagens adquiridas de filmes, e tudo aquilo ficava muito longe da realidade. Daí que as aventuras nas Caraíbas de Errol Flynn ou Kirk Douglas em nada me fizessem pensar daquela no meu avô, ele que sabia de mar mais que Flynn e Douglas juntos, e talvez até soubesse mais das Caraíbas, tanto como gostava dos seus mapas e atlas.

Quando, já no liceu, eu e alguns amigos levámos uma iniciativa para reciclar baterias, lembro ter assistido em silêncio às brigas dele com a minha mãe, que insistia em comprar novos tachos, em lugar de empregar os que o Samaro teimava em reciclar com novas pegas de madeira. Naquela altura, inconsciente, estava sem pensar do lado da minha mãe. Suponho que porque o meu avô não sabia que coisa fosse essa da reciclagem, se bem que sempre a tivesse feito, e apesar de que eu, sabendo a teoria, não chegasse nem aos calcanhares do exercício ecológico que era a vida do Samaro.

Falo do que eu lembro dele quando eu era criança e ainda depois, mas sei que este homem teve uma vida muito antes da minha chegada ao mundo. Qual fosse é que eu não sei. Apenas chego a conhecer fragmentos. Casou com a minha avó, isso é certeza. Também sei que assistiu alguma manifestação do 1º de Maio durante a II República, mas não pude saber muito mais, porque a minha avó o fez calar por medo. Trabalhou como ninguém pode imaginar, e no tempo livre simplesmente passeava com o seu cão, sem passar demasiado pela taberna, como sim fazia a maioria dos seus iguais. Lembro-o solitário, e suspeito que sempre tenha sido.

Sei também que ia procurar mexilhão longe, três ou quatro homens na mesma dorna, viagens de vários dias a velear, saindo da calmaria da ria para onde o Atlântico se enerva. Ele vem dessa época em que as indústrias de salga de peixe e de marisco começavam a agromar na Ria de Arousa, e homens, mulheres e crianças jogavam as suas vidas para alimentá-las. Da época, também, em que começou a haver movimentos operários, que suspeito Samaro tenha rondado, sem se implicar demasiado, como correspondia a uma pessoa discreta como ele.

Chegou-nos de uma época em que o "repente" era uma causa de morte, e de repente quis falar dele. E depois desta mínima lembrança que aqui deixo, resulta-me impossível imaginá-lo como seguramente esteja hoje, depois dos enfartes e a apoplexia: grudado ao sofá da casa dos meus pais na Ilha, dormitando perante um ecrã de TV de que só lhe interessaram, em toda a vida, as previsões climatéricas.

Percursos

Sou um desenhador gráfico medíocre.

Sou um informático ínfimo.

Sou um professor normalinho.

Era um poeta e já não sou.

É verdade que desfruto com o que faço. Mas há dias como hoje que me pergunto onde ficaram as aspirações passadas.

Isto tinha um nome que li há pouco. Síndroma de não-sei-quê: há tantas coisas interessantes para fazer que afinal resulta impossível centrar-se apenas numa.

Aprendi a sonhar da minha mãe. Ou talvez fosse simplesmente a sua presença feminina que fez com que não morresse essa aspiração natural que é imaginar-se melhor e querer sê-lo. Aprendi do meu pai a ser pau para toda a colher, uma pessoa útil, não negar-me, em geral, ao trabalho, e não desprezar esforços, por insignificantes que pareçam, enquanto forem necessários. Bem pensado, talvez simplesmente tenha aprendido as duas coisas dos dois, pai e mãe. E o resultado, suponho, só podia ser isto que sou: alguém disposto a fazer o preciso para o nascimento do sonho de a minha língua vir a ser a portuguesa.

Mas houve um tempo em que me sonhei sobretudo poeta. Escrevia por volta de dois poemas por dia, quando era novo. Depois comecei a deixar de parte a quantidade, mais preocupado pela qualidade. Aos 24 anos, acho que a sensibilidade poética virara modo de vida, graças em grande parte à intervenção da prática do budismo Zen. O poema devia ser sobretudo uma verdade, e passei a entender porque Antero podia pertencer à mesma geração que Eça. Líamos Cioran, Kierkegaard, Lautreamont, Pessoa, Saint-Exupéry somados à minhas anteriores leituras de Valente, que tanto me marcara.

Há pouco disse-me Ramom "tínhamos leituras duras, podíamos ter chegado a ser uma geração das boas". "Só faltava sermos mais de dois", retorqui irónico. E receio que os dois temos razão.

E sem ter morrido a esperança de vir um dia a ser poeta, eis que muitos que na altura considerava maus escritores(sempre, é claro, do meu ponto de vista de um poema precisar ser uma verdade) persistiram na escrita e na vontade de se fazerem públicos. Eu, no entanto, virei-me para as coisas úteis (as que eu considerei, é claro). Fiz-me linguista porque achei que eram precisos professores de língua portuguesa. Nos diversos movimentos em que estive, decidi empregar os meus parcos conhecimentos de composição estética para fazer aquilo que ninguém fazia: aprendi a desenhar coisinhas e fazer leiautes vários com o meu computador. A partir daí, acabei por entrar a fazer parte da equipa do PGL de mão do Valentim, em princípio para fazer imagens, mas logo acabei por aprender quatro noções de desenho web que me foram levando até criar estes blogues todos, e hoje até me ocupo também do Portal. Aqueles que persistiram continuam a ser poetas. Eu sou um responsável técnico.

E não me foi mal, é claro. Não me queixo. Mas às vezes é-me difícil reconhecer-me no passado e preciso vir a este blogue para lembrar os percursos. Desculpem se macei. Já deixo a lareta.

<< 1 ... 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 ... 128 >>