Poema de amor verdadeiro

Eu não te necessito.
Se não estás
estou sozinho ou com outras pessoas
e não se passa nada.
A tua ausência
não enche o coração de ausências,
porque a minha vida
não és tu.
O meu coração,
que tu tão bem conheces,
também não te pertence.
Afinal, estou a usá-lo
e necessito-o
também com outra gente.
Mas contigo estou melhor que sem ti.
Tu dás valor a coisas que antes nem considerava.
Há algumas que com mais ninguém
consigo compartir.
Contigo o coração é terno
mas não eterno.
Contigo é mais fácil sentir amor à vida
e talvez seja por isso
que a vida te ama
através de mim.
E isso
é
tudo.
E mais nada.

Improvisação com rima

deixar fluir o tempo com o tempo
a vida continua pelas mãos afora
e nada mais que o vento pelo vento
se deixa arrastar para o interior da porta
do peito deste peito dos seus peitos
gravados na memória da memória
e no ventre da deusa em que derreto
em carne e voz a diluir na boca
a sensação de polpa que um segredo
deixa na boca da boca dessa boca

Um homem às direitas
Um homem às direitas

Devia de ter eu os meus cinco ou seis anos. Naquela época os meus pais deixavam-me ficar em casa dos meus avós durante longas temporadas no verão, num tempo que eu desfrutava entre o mar e a pouca terra da Arousa, que parecia infinita sob os meus pés. Passava o tempo com amigos ou simplesmente seguindo o meu avô Francisco, o Samaro, nas suas caminhadas. Às vezes levava-me com ele pescar chopos, ou à batea, onde eu ficava maravilhado com a força infinita das suas mãos e braços, capazes de levantar cordas de ostras em peso.

As manhãs eram normalmente para passar o tempo em Pedra Serrada. Em casa dos meus avós, eu brincava com o cão, subia à figueira, ou acompanhava Francisco a fazer todo o tipo de trabalhos, de plantar ou colher batatas e milho a arranjar objetos trabalhando madeira. A minha avó, entretanto, limpava ou cozinhava dentro de casa, e não me queria lá dentro. Ela também plantava e colhia quando era o tempo, mas o que ela mais gostava era de falar com a vizinhança. A casa tinha um caminho que unia Pedra Serrada com a rua do cemitério, e ainda que era privado, era constantemente transido por pessoas que saudavam e davam uma conversa que a minha avó adorava. Por ali falava-se de tudo o que acontecia na Ilha, e dava-se opinião velada sobre a vida de todo o mundo. O meu avô, no entanto, gostava de estar sozinho, com o cão, e trabalhar com as mãos ou caminhar. E falava também com os vizinhos, é claro, mas assim que podia saía de casa para caminhar em silêncio.

Na parte de trás da casa, que agora já é parte de diante, tinham os meus avós um galinheiro. Eu não gostava muito das pitas, que achava bastante aborrecidas, ainda que me emocionava cada vez que encontrava um ovo por baixo do poleiro. Acho que era a minha avó que lidava mais com elas, e foi ela que descobriu nalguma ocasião que os pardais andavam a comer o grão. Depois de um tempo, decidiram pôr uma rede ao grande oco que as reixas deixavam pela parte de cima, e lá ficavam presos os pardais cada vez que tentavam chegar-se a comer.

A partir daí, o galinheiro ganhou interesse para mim. Subido à figueira, onde gostava de passar a maior parte do tempo, estava atento sempre por se nalguma ocasião caía um pardal. Quando acontecia, corria a buscar o meu avô, que, com aquelas mãos grandes, agarrava o pardal com cuidado e baixava-o para que eu visse de perto como era. Às vezes permitia-me segurá-lo eu próprio, mas sempre, sempre, o pardal voltava a ser ceivo.

Numa ocasião que o meu avô não estava em casa, vi de cima da figueira um pardal na rede, e fui correndo buscar a minha avó. Ela veio logo para fora, e descobriu que lá não havia um pardal, mas dois, e perante os meus olhos, apanhou-os um a um e retorceu-lhes o pescoço. Mentiria se dissesse que aquilo me resultou violento, mas evidentemente chocou-me a diferença na forma de agir. Por isso lhe perguntei:

    - Abuela, porque mataste os passarinhos?
    - Para comê-los! Agora vou frigi-los e já verás que bem sabem.
    - Pero o abuelo não os mata nunca?.
    - Às vezes o teu abuelo não faz as coisas como um homem às direitas. A partir de agora, se gostas dos passarinhos no prato, tu diz-lhe que os mate.

Aquele dia a minha avó comeu um pardal e eu o outro, enquanto o meu avô engolia um grande prato de arroz com qualquer coisa. Eu gostei do sabor do passarinho, ainda que me resultou muito difícil de comer, porque havia muitos ossos e pouca carne. Mesmo assim o meu veredito era claro: o passarinho sabia bem.

Dias depois, estando eu brincando outra vez na figueira, enquanto o meu avô trabalhava no alboio, um novo pardal caiu na rede. A minha avó devia ter ido à vila para qualquer coisa, porque lembro que não estava em casa. Como era habitual, corri a buscar o meu avô, e ele veio e agarrou-o nas suas mãos enormes. Mas desta vez eu não tinha tanto interesse em ver o passarinho:

    - Abuelo, mata o pardal?

O meu avô ficou paralisado.

    - Pero porquê?
    - Para que abuela o cozinhe e eu possa comê-lo.
    - Pero o pardal quase não tem carne, não vale a pena?
    - Eu gosto! Sabe bem.
    - Um pardal pequeninho, tão bonito, não preferes soltá-lo?
    - Não, a abuela diz que matá-lo é fazer as coisas como um homem às direitas, e tu tens de ser um homem às direitas?

Então o meu avô Francisco, o Samaro, retorceu a cabeça do pardal com suas mãos enormes. Enquanto o fazia, o seu rosto desfigurou-se e as lágrimas saltaram-lhe nos olhos. Eu olhei para aquilo estupefacto e, ao pouco tempo, era eu quem chorava desconsoladamente. Então o meu avô disse-me algo irritado entre as suas próprias lágrimas:

    - Pero só o fiz porque tu mo pediste!

E eu voltei a chorar ainda com mais força, porque era verdade.

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