o que eu não pedi

04-09-2005

INSTANTÂNEOS, PORTURARIDADE

o que eu não pedi

Da manhã despertei com poeira nos olhos, também no corpo e nos pés, e sem espirrar nem tentar limpá-la do corpo tentei comê-la, a pensar que saboreando-a poderia entendê-la. Primeiro lambi os ombros, onde apenas tinha alguma poeira. Não me soube a muito. Muita poluição, algum caos, nada de mais. Na palma das mãos a poeira sabia a néctar, e daí passei para o peito e púbis. Era poeira mais espessa e escura, mais suja que o resto. Sabia a detritos da construção, a areia salgada e ferro de armações de betão, e a alumínio partido. Já não lambi os pés por nojo do que via e cheirava, e às costas a minha língua não chegava. Quando reparei que o meu corpo era Portugal, e que o sonho era ainda pesadelo e o despertar parecia longe, foi quando abri a janela e enfrentei a rua.

Não imagino quem emporcalhou a minha terra e, assim, o meu corpo, mas tenho como certo que não foi com a minha autorização. Eu não pedi para passar três horas cada dia entre dois carros em filas de muitos outros carros em viadutos ondulados. Não fui eu que pedi para morar ao lado das lixeiras do subúrbio, de ter os meus filhos a andarem pela nacional sem passeios a caminho da escola. Ei, não fui eu que pedi ao meu cunhado para cortar os carvalhos onde feríamos os cotovelos e jogávamos futebol, para lá plantar eucaliptos, nem pedi ao fogo para comer todas estas recordações. Nem pedi às chuvas de Inverno que descessem pela encosta queimada e levassem a casa onde o meu pai nos teve. Foi sem o meu consentimento, porque nunca o autorizaria, não. Nem pedi ao patrão da minha Rosa, a esse cabrão sem outro nome que a despediu e às outras cento e vinte e sete trabalhadoras para abrir falência e reformar-se, numa ilha onde já vivia o resto da família.

Fui eu que pedi esta sociedade? Fui eu que pedi um emprego com dez horas diárias, com o terror contínuo do despedimento sem justa causa, sem delegado sindical, e ainda ter de servir de picheleiro do patrão aos fins de semana, mesmo quando a Rosa estava doente acamada e eu com a pedra a doer-me? Fui eu que pedi para deixar de fazer o meu vinho e as minhas couves por não ter terreno e a ter de os comprar, sem jeito nem sabor, no Feira Nova cá da terra?

Quem pediu este mundo em que vivemos, este A4 mal fotocopiado de outras paisagens onde o sol parece brilhar mais? Eu não pedi esta terra de centros comerciais sem jeito e rotundas sem trânsito, com brandos costumes e violenta passividade. Gostava de me juntar ao Zé Tó e ao Ernesto, ao Gonçalves e ao filho, jogar cartas e beber aguardente sem pensar em mais no café da Associação. Já não vou lá porque o dinheiro só dá para o gasóleo da viagem para o emprego, qualquer dia nem para isso, e para a Associação demora-se vinte minutos a pé, e os montes são inclementes e os passeios nem vê-los, e qualquer dia vou ter de ir a pé para onde for, o dinheiro já não sobra para nada, e amanhã tenho de ir lavar o novo Porsche do patrão, e a casa dele é tão longe, e a carreira não chega lá, e a pedra nos rins que me dói quando choro, e tudo mais que não me aconteceu.

Eu não pedi nada disto, mas foi o que me deram.

BLOGADO ?S 18:08:29

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